faz parte da divisão Informa Markets da Informa PLC

Este site é operado por uma empresa ou empresas de propriedade da Informa PLC e todos os direitos autorais residem com eles. A sede da Informa PLC é 5 Howick Place, Londres SW1P 1WG. Registrado na Inglaterra e no País de Gales. Número 8860726.

Erisictão e os planos de saúde

Article-Erisictão e os planos de saúde

O Dia do Médico é na maioria das vezes lembrado de forma festiva. Mas não há muito o que se festejar quando se trata das relações de trabalho com as quais o médico vem lidando ao longo dos últimos anos.

Erisictão, rei da Tessália, era um

personagem na mitologia grega que teve um estranho fim: por ser arrogante, não

prestar homenagem a nenhum deus e ignorar os apelos de Deméter, deusa da

agricultura, para que não derrubasse a sua árvore sagrada (ele a derrubou em

seguida), foi invadido em suas entranhas por Némesis (a vingança) e Limos (a

fome), por ordem desta, de forma que a partir daquele momento passaria a ter

uma fome tão intensa que, após extinguir toda a comida de seu reino e de vender

sua família para adquirir mais comida e ainda assim não saciar a sua fome,

acabou por comer a si mesmo e morrer.

Encontrei nessa história a

metáfora mais que perfeita para servir de fio condutor nessa homenagem às

avessas ao dia do médico, que ocorreu recentemente.

Devo confessar que em pelo menos

um aspecto não vejo muito que comemorar nessa data: os médicos estão infelizes

com a situação à qual a própria classe se colocou com relação à intermediação

das relações de trabalho feitas pelas operadoras de planos de saúde, que não

entregam aos profissionais o valor ao qual fazem jus pelos seus serviços. E o

pior, tais quais as ondas do mar batendo nas pedras (me perdoem a licença

poética), todos os anos reproduzem as mesmas queixas e muxoxos, sem nenhuma

conquista de impacto para a classe.

Longe de ser um comentário

panfletário, e sem esperar esgotar o assunto, não consigo deixar de refletir

acerca dessa situação tão imperfeita, e que afeta toda uma categoria

profissional  nas suas mais variadas

formas de agir. E, por respingos, outras categorias, por que não dizer.

As operadoras de planos de saúde

vicejaram em nosso país em função de um hiato criado pela nossa própria

sociedade. A ordem vigente mantinha um sistema de atendimento em saúde pública

distorcido, excludente e burocrático que somente veio a se parecer com algo

mais universal e socializante com a 8ª Conferência Nacional de Saúde e o seu

filhote, o SUDS (hoje SUS). A classe média crescente, órfã de um atendimento em

saúde diferenciado, sem filas e com qualidade superior, enxergava nos planos de

saúde da época um meio de, através de uma contrapartida razoável dos seus

orçamentos, exercer seu direito de ter um padrão diferenciado de atenção à

saúde.

Naquele momento (estamos falando

na década de 70 até meados da década de 80 do século passado), os custos

envolvidos na cadeia produtiva em saúde eram muito baixos em relação aos custos

atuais, assim como os insumos voltados para tecnologias diagnósticas e

terapêuticas estavam apenas iniciando seus primeiros passos rumo à explosão de

inovações disponíveis a partir dos anos 90, e seus consequentes custos

cumulativos. Para os padrões da época, um salário pago por uma operadora de

planos de saúde, ou mesmo os valores descritos em suas tabelas de procedimentos

para pagamento de serviços, tais como as consultas, eram bastante atraentes

para os médicos.

No caminho inverso, os

profissionais dos serviços públicos tiveram um achatamento sem precedentes em

seus vencimentos, na esfera federal e estadual. Com a municipalização,

corolário básico do SUDS/SUS, os cargos de gestão ficaram por definição a serem

constituídos e remunerados de acordo com cada prefeitura dentro de um

planejamento individual, num mosaico de valores e formas de agregação confusa,

pouco clara, não regulada, e que até hoje persiste.

A transferência de

responsabilidades na assistência à saúde, tirando gradativamente esse encargo

do plano de federal, ficou cada vez mais evidente nos governos que se seguiram

à época da ditadura, provocando um distanciamento cada vez maior entre uma

obrigação constitucional de prover um serviço universal e de boa qualidade, e

os orçamentos minguados para o que deveria ser feito. Esses mesmos orçamentos

algumas vezes nunca eram aplicados em sua totalidade, em outras vezes aplicados

de forma inadequada por incapacidade gerencial ou, para ficar num vocabulário

mais moderninho, seguiam os “maus caminhos”. Ainda hoje o governo federal se

esquiva de assumir seus compromissos orçamentários (lembrem-se da discussão acerca

da emenda 29), deixando aos estados e municípios o ônus de serem obrigados a

manter seus gastos determinados por lei sem poderem contar com a contrapartida

da União na sua plenitude.

O ambiente para a disseminação

das empresas que comercializavam planos de saúde nunca esteve mais propício

nessa época, fazendo crescer empresas sérias e empresas oportunistas, que

lesaram muita gente inocente. E em função de uma terrível sopa de letrinhas, em

que cada empresa ditava suas regras de exclusão e de transferência de custos

para as mensalidades de usuário, surgiu a lei 9656 de 1998 para regulamentar a

atuação dos Planos de Saúde, seguida da criação da ANS – Agência Nacional de

Saúde, nascida com a função primordial de tentar criar a interface apropriada

nas relações entre usuários de planos de saúde e as operadoras que vendiam os

tais planos. Até mesmo a ideologia neo-liberal da época, trabalhando na criação

de um estado mínimo, teve que se render a uma certa regulaçãozinha devido à

pressão popular e política da época.

Ocorre que de lá para cá muita

coisa mudou: mudou a pirâmide populacional do país, que passou a contar com

indivíduos cada vez mais velhos (e, consequentemente, mais propensos a

desenvolver doenças, principalmente as doenças ditas da modernidade, crônicas e

caras). Mudou também o perfil da indústria de insumos e tecnologias em saúde, a

partir de inovações (muitas delas de eficácia duvidosa) rapidamente absorvidas

pelos usuários, seus médicos ou hospitais prestadores de serviço, sempre sob a

justificativa de agregar valor à saúde das pessoas. Com o sucateamento dos

serviços públicos, mudou também o padrão de prestação de serviços em saúde, que

passou a contar com estruturas que privilegiavam cada vez mais a complexidade

do tratamento em detrimento da prevenção de doenças, numa indisfarçada maneira

de auferir lucros maiores num mercado cada vez competitivo, aproveitando a

fragilidade das estruturas de planejamento nas ações de prevenção de doenças e

gestão pública adequada. Todas essas mudanças elevaram de forma exponencial os

custos de toda a cadeia produtiva no setor, fazendo com que as operadoras de

planos de saúde passassem a ser obrigadas a ter maior controle em seus gastos e

maior atenção no comportamento de usuários e prestadores.

Desde então inúmeras estratégias

de contenção de custos por parte das operadoras de planos de saúde têm sido

tentadas na expectativa de reverter esse cenário adverso. Com índices de

sinistralidade bem próximos da faixa de inoperabilidade, não havia outra forma

de um negócio como esse sobreviver sem que algo não pudesse ser feito. Sim,

quando falo em negócio, é negócio mesmo. É uma empresa, com formas de

constituição e estatuto social diferentes entre si (seguros-saúde, auto-gestão,

cooperativas, filantropias e medicina de grupo), mas sempre negócios, ou seja,

sua existência está condicionada a um elemento fundamental que parece estar

sempre oculto: necessitam dar lucro para sobreviverem enquanto organizações e

precisam dar os retornos financeiros esperados aos seus sócios-investidores.

Não vou me estender acerca das

várias formas utilizadas para o alcance desse objetivo, mas uma forma em

especial nos remete ao tema central dessa conversa: os valores pagos pelo

trabalho ou ato médico sofreram (e ainda sofrem) um processo progressivo de

desvalorização tão grande e inconcebível que quase se paga para trabalhar hoje

nos consultórios e hospitais que atendem usuários dessas empresas.

Como já foi amplamente

demonstrado através de incontáveis estudos, os reajustes percentuais das operadoras

aos usuários sempre esteve bem acima daqueles repassados para pagamento de

honorários médicos, principalmente consultas, utilizado como

procedimento-âncora nas reivindicações. Na condição de já ter convivido por um

tempo bem grande nas entranhas de grandes operadoras, é nítido que os valores

apresentados pelas faturas hospitalares, principalmente de hospitais de alta

complexidade, têm um papel fundamental na prioridade da utilização do mísero

dinheirinho que deveria tornar os honorários mais atraentes. Não é para menos.

É consenso geral de que as contas hospitalares representam a grande chaga na

contabilidade das empresas, por onde escoa a maior parte daquilo que é

arrecadado.

Mas não é tão somente isso. No

atual estado de coisas, para que negociar com uma classe que por trás de um

discurso de unidade apresenta inúmeras dissensões? Se eu consigo minar qualquer

movimento oferecendo meia dúzia de bananas e um pacote de balas Juquinha

(lembram?) a mais nos valores da consulta para alguns grupelhos de pessoas,

para que abrir negociação coletiva? E mais, se não existe nenhuma iniciativa

legítima, orquestrada, que envolva toda a classe profissional, para que me

preocupar com um gritinho aqui e outro acolá? E o que dizer daqueles que,

privilegiando de forma acrítica somente a superutilização dos recursos

terapêuticos e diagnósticos dos quais são proprietários para ganhos pessoais

destroem qualquer sonho de atividade solidária para com seus pares, demais

colegas de profissão? E quanto às organizações prestadoras de serviços em

saúde, quase todas com orçamentos apertados, que se vêem na obrigação de

compensar déficits numa fatura cheia de gordura a ser apresentada à fonte

pagadora, no caso a operadora?

A relação dos médicos com as

empresas de planos de saúde é uma relação viciada, obscena na maior parte das

vezes e de insatisfação mútua. Não se pode conceber que numa consulta médica

habitual um profissional faça uma abordagem técnica minimamente satisfatória em

quinze minutos. Sim, quinze minutos, pois esse é o tempo estimado de consulta

nos diversos consultórios, ambulatórios e demais locais de atendimento médico. Se

paga pouco por consulta? Atendemos em escala. Quanto mais atendimentos, maior o

rendimento. O que o paciente quer? Exame básico e check-up. Nada mais. O

coitado do usuário finge que foi atendido e o profissional finge que atende...

É para isso que fomos treinados?

Não podemos deixar de reforçar a

seguinte questão: somos todos empresas, no sentido de desejar obter vantagens

competitivas. Os hospitais e similares são empresas prestadoras de serviço em

grandes proporções. As operadoras de planos de saúde são empresas que

necessitam maximizar seus lucros para justificar sua existência. O complexo

médico-industrial reúne grandes empresas, que também não fogem à necessidade de

vender cada vez mais para um público alvo com fome cada vez maior de consumo. E

nós, médicos, somos empresas também, pois num sentido mais literal precisamos

fazer com que nossa prestação de serviço gere um resultado financeiro ao final

do mês que pague as nossas contas. A diferença está que, em nosso caso, temos a

obrigação ética de entregar um valor para o paciente, temos uma obrigação de

meio para prover o melhor estado de saúde para o paciente, temos o dever moral

de sermos atenciosos, corteses e empenhados em fazer o melhor dentro da melhor

técnica e arte para o qual fomos treinados..... Mas, francamente, isso é que

acontece, de fato?

O dilema entre médicos e

operadoras não vai acabar nunca. As operadoras não vão jamais atender aos reclames

da classe na proporção esperada. Não querem, por considerar que seria um passo

inicial para levantar questionamentos futuros para outros procedimentos; e não

podem, porque ao contrário do que arrotam na mídia, mal andam com as próprias

pernas. A questão é ideológica: se eu sei as regras do jogo a mim

desfavoráveis, se eu conheço as minhas minguadas perspectivas de ganho, se eu

estou ciente da falência do sistema, e ainda assim aceito entrar como prestador

de serviço, então nada há o que reclamar. Muito mais elegante e honesto

procurar outros meios de ganhar a vida se não concordar com o jogo.

O descredenciamento coletivo para

o atendimento de consultas seria assim a melhor solução para operadoras,

médicos e usuários. Médicos poderiam, enfim, retornar a uma relação

absolutamente liberal no sentido de estabelecer seus preços, mais justos, e se

ajustar à concorrência individualmente ou em grupos. Operadoras se livrariam de

uma parcela significativa de usuários que fazem uma superutilização de seus

serviços de forma desnecessária e onerosa. A compensação pelo ressarcimento de

consultas aos usuários, com esses valores maiores, seria feita através do menor

volume de consultas que seriam pagas ao profissional pelas vias normais. Por fim, pacientes poderiam procurar

profissionais da sua escolha por reputação, conveniência ou preço, sabendo que

teriam um atendimento com padrão de qualidade somente oferecido a um paciente

particular. É tentador imaginar um cenário em que as relações entre os médicos

e seus pacientes atendidos se elevem a um patamar de dignidade há muito

esquecido.

O consolo é que se essa

consciência coletiva não despertar para essa ou qualquer outra atitude, pelo

menos ninguém vai morrer de fome (ou de comer) como nosso infeliz personagem do

início do texto.

Ou vai?