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Temos um sistema de saúde de conveniência?

Article-Temos um sistema de saúde de conveniência?

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Nosso sistema de saúde, ainda em construção, é moldado conforme a força dos ventos e interesses.

Há algum tempo, perdemos a capacidade ou interesse de olhar o futuro e definir metas claras, transparentes e conhecidas pela sociedade para os próximos dez anos. Como podemos construir o sistema de saúde para atender às nossas expectativas se não sabemos aonde e quando queremos chegar? Como estabelecer metas para um prazo definido se nosso instrumento de navegação, ou seja, a coleta de dados e informações sobre o que acontece no sistema de saúde, deixa a desejar? Como lidar com um compromisso de médio e longo prazos se a mentalidade político-ideológica é de absoluto curto prazo ou evanescente?

Não temos hoje um sistema único de saúde e, mesmo o que chamamos de sistema suplementar, não faz jus à sua designação. O que temos de fato é um "sistema de saúde de conveniência". Conveniência, pois a indefinição do ponto de vista regulamentar e a insegurança jurídica fazem com que os interesses de ambos os sistemas e das várias partes interessadas predominem sobre o interesse coletivo. Administramos no dia-a-dia a pobreza de recursos. É mais fácil reconhecer a carência do que aceitar a ineficiência e falência do processo que envolve a priorização, o planejamento, a implementação, a mensuração dos resultados e a reavaliação das ações.

O sistema suplementar só existe e progressivamente se estrutura, pois 23% da população brasileira hoje desejam e optam por um pagamento adicional para ter direito ao uso deste. Milhões de brasileiros certamente têm o mesmo desejo, porém não possuem a condição econômico-financeira para tal. Caso o sistema público oferecesse o que os brasileiros entendem por qualidade na prestação de serviços em saúde, certamente esta disposição para um pagamento adicional não existiria ou seria necessária.

Num ambiente onde as escolhas individuais são cada vez mais valorizadas, desde que respeitem os marcos legais e os valores éticos e morais, o desafio é a construção de um sistema de saúde cada vez melhor e que atenda minimamente às expectativas de seus usuários. E ainda, cidadãos saudáveis desejam estratégias que enfoquem a promoção de saúde e prevenção de doenças, pois estas consideram o futuro, apesar das incertezas, como algo visível e passível de ser valorizado. Neste ambiente, não há vácuo regulatório. O mercado se auto-regulamenta orientado por dados e informações disponíveis e, acima de tudo por interesses.

O atual sistema é de conveniência, e as partes interessadas ora ganham ou perdem. A dualidade de sistemas, desta forma, atende, por um lado, à expectativa de uma parte da população (que pode pagar pelo mesmo); por outro, cria uma iniqüidade entre brasileiros. Um dos potenciais ganhos para os usuários do sistema público é a potencial menor angústia ou concorrência no uso dos serviços disponibilizados. A complexidade e a conveniência crescem ao se admitir que, pelo fato de todos os brasileiros contribuírem com taxas e impostos, têm o direito de uso dos escassos recursos públicos. Já as políticas e alguns programas que envolvem a atenção básica à saúde são definidos e ofertados majoritariamente pelo sistema público. Os programas que envolvem a alta complexidade são também oferecidos pelo sistema público e para estes há uma competição pelo seu uso. Há a conveniência na oferta dos serviços de alta complexidade (público e privado), pois a remuneração dos mesmos é comparativamente atrativa, o que ocasiona um desestímulo à oferta de serviços menos sofisticados, porém muito necessários.

Esse fato promove uma enorme distorção e contribui para inverter a lógica assistencial. Há um estímulo para a especialização em detrimento do profissional generalista. A ausência de definição de prioridades loco-regionais contribui para a renovação tecnológica acrítica. A oferta orienta e cria a demanda, o que atende aos interesses do modelo médico-hospitalar e assistencial existente e estimulado globalmente, outra conveniência. Drogas e tecnologias de alto custo são disponibilizadas para todos brasileiros (todos têm direitos), porém a definição do ponto de vista do que, quanto e para quem disponibilizar carece de um processo sustentado nas melhores evidências técnico-científicas, outra limitação e conveniência. O sistema super especializado convenientemente atende à lógica de contínua formação e qualificação de profissionais, nem sempre fundamentada pela necessidade, mas que estimula e alimenta oportunidades na esfera educacional.

A geração de novos conhecimentos, num ambiente competitivo global, é orientada muito mais pelo interesse individual do pesquisador ou de grupos empresariais específicos do que pelas necessidades e lacunas do conhecimento a serem priorizados e definidos pelo sistema de saúde. A mais valia, para o pesquisador, está associada à publicação de um artigo em revista técnico-científica internacional, e não à solução de problemas e dúvidas práticas do sistema de saúde. Tal modelo, embora não atenda às necessidades do sistema de saúde, é conveniente, pois estimula a geração de conhecimento pouco aplicável no curto prazo, porém muito promissor no longo prazo. É também conveniente no âmbito social e aceito coletivamente, pois mantém a esperança daqueles que sofrem com uma determinada doença, embora injustificável ao assumir que o atual sistema tenha um olhar focado apenas para o curto prazo.

Por fim, em sistemas complexos, pouco educados e influenciados por interesses específicos, algumas ações implicam reações nem sempre estruturadas, o que contribui para o aumento da entropia. O excesso de conveniência corre o sério risco de não ser sustentável, além de injusto socialmente e altamente inseguro para todos. Os princípios doutrinários e organizacionais de nosso sistema de saúde já estão definidos. É preciso interpretá-los à luz das condições atuais e definir como de fato atendê-los. Urge pensar no longo prazo e ter coragem para definir prioridades e modelos assistenciais que sejam adequados à nossa realidade econômico-social e educacional. Urge a responsabilização dos envolvidos neste processo, que se fundamenta em dois elementos críticos: liderança e educação.