A sustentabilidade no setor de saúde é um assunto sempre em pauta. Diante de um cenário de maior expectativa de vida, no qual as pessoas demandam mais cuidados de saúde, e de tecnologias cada vez mais caras, é natural que operadoras, hospitais e demais instituições de saúde encontrem dificuldades para se manter sustentáveis.
No entanto, para os planos de saúde, o cenário parece menos sombrio. As empresas do setor registraram lucro líquido de R$ 11,1 bilhões em 2024, um aumento de 271% em comparação com 2023. Este resultado também é superior ao que foi obtido nos três anos anteriores somados. Por outro lado, hospitais e prestadores enfrentam dificuldades financeiras, com margens cada vez mais apertadas e desafios na negociação com planos de saúde.
De acordo com os dados divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), essa recuperação é resultado da reorganização financeira promovida especialmente pelas operadoras de grande porte, que têm reajustado as mensalidades em patamar superior à variação dos custos com as despesas assistenciais. Além disso, as aplicações financeiras também contribuíram para esses bons números.
Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), explica que esses resultados são provenientes do empenho e resiliência das companhias e dos profissionais do setor. “Embora indiquem uma melhora em relação aos anos anteriores, os resultados seguem abaixo dos patamares pré-pandemia. Em 2024, as mais de 660 operadoras juntas apresentaram um resultado operacional de R$ 3,96 bilhões, com uma margem de apenas 1,32% sobre a receita total”, observa ele.
O executivo destaca ainda que a percepção de lucro desconsidera o fato de que 44,4% dessas operadoras, responsáveis pelo atendimento e cuidado de 15,2 milhões de beneficiários, fecharam o ano com resultados negativos. “Ainda há muitas barreiras a serem ultrapassadas para que se alcance um nível de sustentabilidade que gere mais tranquilidade e amplie o acesso à saúde pela população.”
A recuperação do setor pode beneficiar toda a cadeia?
Na opinião de Ribeiro, sim. “A recuperação do setor é fundamental para a sustentabilidade e o equilíbrio de todo o sistema suplementar de saúde. Segundo dados da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), as operadoras de planos de saúde são responsáveis por 80,6% das receitas dos hospitais e 74% das receitas dos laboratórios diagnósticos. Um sistema de saúde saudável é bom para todos, principalmente para a população, que pode contar e se beneficiar com o acesso a serviços de excelência no cuidado e atenção à própria saúde”, analisa Ribeiro.
Para Reginaldo Teófanes, presidente da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), é importante reconhecer que o bom desempenho financeiro das operadoras é um sinal positivo para todo o setor de saúde suplementar. No entanto, para que esse ciclo virtuoso se complete, é essencial que os estabelecimentos de saúde também estejam financeiramente saudáveis.
“A sustentabilidade do sistema passa, necessariamente, por uma relação mais equilibrada e transparente entre operadoras e hospitais. Isso envolve, por exemplo, rever práticas como as glosas excessivas e pouco justificadas, que geram incertezas financeiras e operacionais aos prestadores. Aqui na FBH, a nossa expectativa é que possamos avançar para um modelo de corresponsabilidade, em que operadoras e hospitais caminhem lado a lado, compartilhando riscos, resultados e, principalmente, compromissos com a qualidade assistencial.”
Na opinião de Teófanes, o modelo vigente impõe desafios. Segundo o executivo, a assimetria de poder nas negociações, que hoje pende para as operadoras em detrimento dos estabelecimentos, somada à ausência de um agente regulador de mercado que promova maior equilíbrio entre os elos da cadeia, acaba por fragilizar os prestadores, que muitas vezes operam no limite da viabilidade.
“Ainda que exista o direito legítimo de auditar e glosar serviços quando há inconsistências, o que temos observado é uma banalização desse instrumento, utilizado de forma quase sistemática e, em muitos casos, sem fundamentação adequada. Isso gera instabilidade, imprevisibilidade e insegurança jurídica. A longo prazo, teremos comprometimento de investimentos e da própria permanência de muitos hospitais no mercado.”
Milva Pagano, diretora-executiva da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), reforça a opinião de Teófanes ao compartilhar sua visão de que o modelo atual exerce uma pressão contínua e desproporcional sobre os prestadores, o que pode comprometer a manutenção da qualidade dos serviços oferecidos. “A sustentabilidade do setor depende de um redesenho nas relações, com uma visão mais integrada e colaborativa entre todos os agentes que compõem esse ecossistema.”
Recentemente, a Anahp realizou um evento para debater a recuperação expressiva das operadoras de planos de saúde no ano passado e o agravamento do desequilíbrio com os hospitais, principalmente por conta das glosas e dos prazos de pagamento alongados.
Antônio Britto, diretor-executivo da associação, diz que só haverá equilíbrio se a relação respeitar a necessidade de operadoras e hospitais serem saudáveis financeiramente. “O sistema de saúde suplementar não será sustentável se for bom para um só lado. Estamos falando aqui de um sistema onde os elos da cadeira conversam mal, e isso tem impedido que operadoras e hospitais discutam novas formas de trabalho.”
Segundo ele, quando os diversos atores se sentam à mesa, a discussão gira em torno do fator preço. “Nesse cenário, a conversa não tem futuro e o sistema não vai se ajustar e se recuperar. Temos que mudar o tom da conversa, pois a realidade é que hospitais e operadoras investem pouco na atividade que vai salvar o setor, que é a prevenção e a promoção da saúde. Não vemos iniciativas importantes de trabalho conjunto nesse sentido.”
Na avaliação de Charles Lopes, especialista em legislação de saúde suplementar e professor da Escola de Negócios de Seguros (ENS), alguns passos são importantes para a manutenção e garantia da saúde suplementar no Brasil, como a transparência nas negociações, estabelecendo-se um diálogo aberto sobre custos e reajustes; a adoção de modelos que remunerem pela qualidade e eficiência dos serviços, como o pagamento por performance; e a revisão periódica dos contratos para que estes reflitam mudanças nos custos e nas necessidades dos serviços.
Riscos do descompasso
Mas quais os riscos, para hospitais e prestadores, desse cenário onde apenas um dos lados parece em vantagem? “Os sinais de alerta estão acesos há um bom tempo. A FBH, em parceria com a CNSaúde, publica anualmente o ‘Cenário dos Hospitais no Brasil’, estudo que traz dados atualizados sobre aberturas e fechamentos de estabelecimentos e leitos da rede privada e filantrópica. O estudo mostra que o país conta atualmente com menos hospitais e menos leitos do que tinha em 2010, há 15 anos”, destaca Teófanes.
Diz ele ainda que esse encolhimento se reflete em uma crise financeira que abala, sobretudo, os hospitais de pequeno e médio portes, que representam 70% de toda a rede hospitalar brasileira e que são, em muitos municípios, a única opção de assistência à população.
“Quando parte significativa dos recursos que deveriam ser repassados aos hospitais é retida, compromete-se a capacidade dessas instituições de manter e melhorar sua estrutura, investir em inovação e contratar profissionais qualificados. O risco não é apenas para os hospitais, mas para toda a cadeia”, diz Teófanes.
O executivo lembra que as operadoras dependem de uma rede prestadora forte e bem estruturada para ampliar sua base de clientes e oferecer serviços de excelência. “Portanto, quando os hospitais sofrem, todo o sistema sente. O que se coloca em jogo não é apenas a saúde financeira das instituições, mas a qualidade do cuidado oferecido aos pacientes.”
Na avaliação de Britto, os riscos desse descompasso já estão mostrando sua face. O primeiro deles está na estagnação do setor de saúde suplementar, que não registra aumento no número de beneficiários desde 2014 – atualmente, são cerca de 52 milhões de usuários.
“O segundo risco também já é real. Hoje, o sistema desperta uma unanimidade irônica: todos se queixam dele – operadoras, hospitais, pacientes, médicos. O que mais precisa acontecer para que percebamos que o sistema é que está com problemas, e que não adianta um dos atores que o compõe buscar uma saída isolada? Ou reformamos a maneira como o sistema funciona hoje, ou ele será ruim para todos. Em 2024, 41% dos investimentos que estavam previstos pelos hospitais não foram realizados porque eles não conseguem receber das operadoras.”
Teófanes destaca que os hospitais brasileiros têm demonstrado uma notável capacidade de resiliência, mesmo diante de restrições orçamentárias, da alta carga tributária, além dos atrasos nos repasses. Muitos, segundo ele, se esforçam para investir em tecnologia, capacitação de equipes e expansão da infraestrutura.
“No entanto, essa adaptação, em muitos casos, tem sido feita à custa de sacrifícios significativos, como postergação de investimentos ou redução de leitos. Essa não é uma situação sustentável.”
Para Milva, esse desequilíbrio entre os resultados das operadoras e dos hospitais e prestadores pode afetar diretamente a rede oferecida pelos planos de saúde aos beneficiários, comprometendo a qualidade da assistência, o acesso e os diferenciais do atendimento. “Quando não há alinhamento entre operadoras e prestadores, o impacto se espalha por toda a cadeia – e, no centro dela, está o paciente. Sem um esforço conjunto para reequilibrar esse cenário, os efeitos serão sentidos a médio e longo prazo.”
Propostas regulatórias da ANS têm sido debatidas como um possível caminho
A ANS tem proposto alguns caminhos visando à sustentabilidade do setor, como mudanças no sistema de coparticipação, criação de planos que ofereçam apenas consultas e exames, entre outros. Mas até que ponto essas propostas podem efetivamente beneficiar a todos?
Britto diz que a Anahp apoia propostas que fortaleçam o sistema de saúde suplementar e a saúde financeira das operadoras, no entanto, muitas empresas do setor não têm visto com bons olhos a questão de criação de planos ambulatoriais, por exemplo.
Em relação às outras propostas, ele acredita que elas precisam ser melhor esclarecidas. “É preciso que haja uma solução para planos individuais que se tornaram inviáveis e que exista um entendimento sobre formas de coparticipação. O debate está apenas começando. Temos que abrir uma discussão ampla e profunda sobre o que está sendo proposto, mantendo o olhar em uma saída que seja positiva para o setor como um todo.”
Para o presidente da FBH, propostas regulatórias que promovam maior transparência, previsibilidade nos contratos e mecanismos efetivos de resolução de conflitos são fundamentais para o amadurecimento da relação entre operadoras e prestadores.
“Esperamos, por exemplo, que se avance em normas que estabeleçam critérios objetivos e auditáveis para as glosas, bem como instâncias de recurso que realmente funcionem. Além disso, é preciso discutir formas de redistribuir de maneira mais equitativa os resultados positivos do setor. Se queremos um sistema sustentável e centrado no paciente, é indispensável que todos os elos — operadoras, hospitais, profissionais e fornecedores — estejam alinhados e valorizados.”
Milva vê com otimismo as propostas, acreditando que elas podem contribuir para ampliar o acesso, o que tende a atrair mais beneficiários para dentro do sistema e, com isso, gerar maior volume de recursos.
“No entanto, é essencial que essas mudanças sejam acompanhadas de discussões técnicas consistentes e de um olhar atento à qualidade da assistência e à segurança do paciente. A regulação tem papel fundamental nesse processo de reequilíbrio, desde que venha acompanhada de diálogo com todos os setores envolvidos.”
Lopes, da ENS, faz uma avaliação de algumas das propostas e pontua suas considerações:
- Novo modelo de reajuste para contratos de até mil vidas: pode proporcionar maior estabilidade e previsibilidade nos reajustes, beneficiando operadoras e prestadores. No entanto, pode haver perda de informações detalhadas.
- Regras para coparticipação: definir limites financeiros pode ajudar a controlar os custos para os beneficiários e evitar abusos.
- Reativação dos planos individuais com reajuste mais flexível: pode aumentar a competitividade e oferecer mais opções aos consumidores, mas exige renúncia a algumas conquistas.
- Criação de um plano ambulatorial sem urgência e emergência: pode reduzir os custos para os beneficiários e aliviar a pressão sobre os hospitais, mas pode criar um produto com menos proteção.
“Essas medidas têm o potencial de equilibrar o ecossistema de saúde suplementar, promovendo a sustentabilidade financeira, mas certamente reduzirão a qualidade dos serviços oferecidos”, comenta o especialista.
Conquistar a sustentabilidade na saúde suplementar é um desafio complexo, mas possível de ser alcançado com ações coordenadas, inovação e foco na eficiência e qualidade do cuidado. O caminho parece estar na conversa e no entendimento entre todos os que fazem parte dessa cadeia.