No mês de fevereiro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) registrou um total de pouco mais de 52 milhões de beneficiários de planos de saúde no Brasil, número esse que vem se mantendo estável nos últimos anos. Houve um crescimento de 912.706 beneficiários em relação a fevereiro de 2024. Já no comparativo de fevereiro de 2025 com janeiro de 2025, houve uma queda de 10.676 usuários.
Por um lado, um mercado estagnado; do outro, custos de saúde cada vez mais elevados, e, no meio disso, o envelhecimento populacional e o consequente aumento das doenças crônicas. Esse cenário tem feito com que os atores do ecossistema de saúde discutam algumas propostas para manter a sustentabilidade do setor.
Hoje, a pauta gira em torno de temas como regras de coparticipação, determinando o percentual de 30% de coparticipação por procedimento, o limite mensal de 30% do valor da mensalidade e limite anual de até 3,6 vezes o valor da mensalidade; revisão técnica de planos individuais e familiares, que prevê um reajuste maior que o autorizado pela ANS para operadoras que demonstrarem desequilíbrio econômico-financeiro; e a discussão de novas formas de remuneração, onde sairia de cena o modelo fee for service para dar lugar a um modelo de pagamento baseado em valor.
Mas o quanto essas propostas podem realmente contribuir para a sustentabilidade do setor sem com isso afetar a qualidade do atendimento ao consumidor? Esse é o debate que vem sendo travado.
Para José Cechin, superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), as mudanças propostas pela ANS merecem discussões aprofundadas. “A possibilidade de um novo modelo de reajuste para contratos com até mil vidas, mudanças nas regras de coparticipação e reativação dos planos individuais com reajustes mais flexíveis, tem suscitado grande debate nos meios de comunicação e precisam ser avaliadas com cautela.”
Novo formato de plano de saúde
Entre as propostas da ANS, uma tem gerado polêmicas: a criação de planos ambulatoriais que incluem consultas e exames, sem cobertura de urgência e emergência. Para Cechin, esse é outro tema a ser profundamente debatido, com argumentos técnicos e sem vieses. “Esses planos representariam mais uma opção para os consumidores. Como há dúvidas sobre seus efeitos práticos, a ANS optou por submeter essa proposta ao sandbox regulatório por prazo determinado, findo o que poderão ser avaliados seus efeitos práticos.”
O sandbox regulatório funciona como um ambiente experimental de regulação, com as empresas tendo dois anos para testar seu produto, durante os quais deverão seguir algumas regras, o que inclui a criação e registro de um plano de saúde no formato coletivo por adesão, com participação limitada a 30%, além de oferecer bônus aos beneficiários que participarem de programas de cuidado e permanecerem no plano após o período de testes de dois anos.
Passado esse prazo, caso a ANS decida por não manter a modalidade, os beneficiários terão portabilidade extraordinária para troca por outro plano ou a possibilidade de voltar ao plano de origem.
Diferentes atores do ecossistema, diferentes perspectivas
Na avaliação de Cechin, abrir o leque de escolhas para os consumidores não pode ser prejudicial, pois os consumidores não optariam por produtos que piorassem suas situações. “Na verdade, esses planos refletem uma realidade já em curso. O consumidor já vem buscando alternativas mais acessíveis e flexíveis, como clínicas populares e cartões de desconto em saúde, que oferecem serviços com cobertura limitada e sem regulação da ANS. O que a agência está fazendo é abrir espaço para que o setor regulado ofereça esse tipo de serviço com mais segurança para o consumidor. Com isso, os usuários terão acesso a serviços estruturados, com canais formais para reclamação, fiscalização e informações claras sobre os direitos adquiridos.”
Com a criação do modelo mais simples, a expectativa da ANS é ampliar a quantidade de pessoas com acesso à atenção primária e secundária, incluindo cerca de 10 milhões de brasileiros no setor de saúde suplementar. Isso, justifica a Agência, reduziria a fila de exames do SUS e aceleraria o diagnóstico dos pacientes.
Países como os Estados Unidos, com o Obama Care, a África do Sul ou Austrália já adotam modelos mais flexíveis e segmentados na regulação da saúde suplementar. “Essa abordagem permitiu ao setor desenvolver produtos diversificados, com maior capacidade de adaptação à renda e às necessidades específicas de diferentes perfis de consumidores. O resultado foi um mercado mais dinâmico, com maior penetração entre a população, especialmente entre aqueles que antes estavam excluídos do sistema tradicional de cobertura integral. A flexibilidade regulatória não significa ausência de proteção, mas sim a possibilidade de equilibrar acesso, sustentabilidade e responsabilidade contratual”, destaca Cechin.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), representante das operadoras de planos de saúde do país, avalia que a medida abre a possibilidade de ser oferecida mais uma alternativa de assistência aos beneficiários, preservando todas as demais opções de planos hoje disponíveis.
Em nota, a Federação diz que considera, ainda, que coberturas mais focadas, como a proposta pela ANS, podem contribuir para tornar os planos de saúde mais acessíveis e ampliar o acesso dos brasileiros à saúde de qualidade que as operadoras propiciam. Segundo a FenaSaúde, as empresas também irão colaborar para maior promoção de saúde e prevenção de doenças, com efeitos benéficos sobre todo o sistema de saúde, ao aliviar o Sistema Único de Saúde (SUS) das filas de espera de consultas eletivas e exames.
Para o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), a lei que autoriza as agências reguladoras a abrirem processos de sandbox regulatório determina que a inovação é requisito indispensável para ser observado. No entanto, o tipo de plano proposto pela ANS não traz qualquer inovação ao setor de planos de saúde. Trata, na realidade, de um pleito antigo das operadoras de saúde e que vem sendo discutido desde a criação da Lei de Planos de Saúde (Lei nº 9.656), em 1998, pelo setor regulado.
Essa também é a visão do advogado especialista em Direito à Saúde e sócio do escritório Vilhena Silva, Rafael Robba, ao afirmar que a proposta confronta a própria lei, que determina que os planos ambulatoriais de saúde devam ter como cobertura mínima obrigatória procedimentos ambulatoriais como quimioterapia, radioterapia, hemodiálise, entre outros, além de garantir atendimentos de urgência e emergência.
“Essa proposta, além de não contribuir com o melhor funcionamento do sistema de saúde, ainda deixa o consumidor vulnerável, pois caso ele necessite de um tratamento, terá que recorrer ao SUS. Porém, devemos lembrar que a porta de entrada para o SUS são as Unidades Básicas de Saúde (UBSs)”, analisa Robba. Isso significa que toda a jornada do paciente começaria do zero, com novas consultas e exames sendo necessários, o que pode levar a um atraso no início do tratamento e um aumento nos custos.
Essa questão apontada por Robba deve estar na pauta de discussão caso a proposta seja aprovada, acredita Cechin. “Existem dois pontos de atenção: a posição na fila e, para evitar desperdícios, o SUS precisará se valer dos resultados dos exames que o paciente fez pelo plano.”
Para Yuri Hidd, pesquisador do Programa de Saúde do Idec, produtos nesse formato não garantem o direito à saúde do paciente, pois as suas necessidades de saúde não se esgotam na realização de consultas e exames.
“Com esses produtos, os consumidores terão no máximo um diagnóstico. Hoje, os planos existentes também se separam entre aqueles que oferecem serviços de maior ou de menor qualidade. Com a proposta de planos ainda mais desregulamentados, é possível que, além de não terem seus problemas de saúde resolvidos, também terão atendimentos de baixa qualidade. É preciso destacar, ainda, que a ANS não avança sobre a regulação de prestadores de serviço ou de certificação de qualidade.”
Para Cechin, a proteção ao consumidor em um modelo mais flexível está diretamente ligada à atuação regulatória da ANS, à transparência contratual e a vendas bem-informadas. “Um contrato claro e bem delimitado garante que o beneficiário tenha pleno conhecimento dos serviços que está adquirindo. Assim como acontece com os cartões de desconto em saúde, o consumidor não terá mais direitos do que os previstos no contrato — mas, diferente desses produtos, terá a segurança de contar com um operador regulado, sujeito às normas da ANS. Cabe à agência garantir que os limites de cobertura estejam explicitados e que haja canais eficazes de fiscalização, orientação aos prospectivos contratantes e resolução de conflitos.”
Hidd comenta ainda que existe o risco de que a flexibilização favoreça grandes corporações em detrimento de pequenos prestadores de serviço. “Hoje, já existe um mercado privado de saúde que oferece serviços desregulamentados de consultas e exames para pacientes – os cartões de desconto e as clínicas populares. Grandes empresas não conseguem operar nesse mercado, pois ele não é regulamentado pela ANS. Ao criar produtos com menor regulamentação, a ANS está atendendo ao anseio das operadoras por essa reserva de mercado, ainda que em detrimento da saúde dos pacientes.”
Sobre a possibilidade de redução de custos em saúde e aumento do acesso, o pesquisador do Idec analisa que os produtos são mais lucrativos para as operadoras, pois cobrem apenas os serviços de saúde mais baratos, o que pode sobrecarregar o SUS, em especial considerando que, com a possibilidade de oferecer produtos mais baratos e flexíveis, ocorra um downgrade, ou seja, pessoas que hoje têm planos de saúde migrem para esse novo produto que diminui seu acesso aos serviços de saúde.
Segundo Cechin, os atendimentos ambulatoriais têm alta resolutividade (entre 80% e mais de 90% dos casos). “O atendimento ambulatorial faz uso mais eficiente dos recursos, daí a redução de custos, sem falar que as orientações adequadas por parte do profissional podem ajudar o paciente a construir saúde e evitar o adoecimento.”
Para Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), a proposta não reduz custo do que é necessário, somente do que é entregue, e não deve avançar. “A saúde suplementar, para sobreviver, tem que aumentar a sua eficiência.”
O debate sobre sustentabilidade em saúde tem levado à criação de propostas que precisam ser amplamente debatidas para que tanto empresas quanto consumidores possam ter suas necessidades atendidas, sem risco para o que mais importa: a saúde das pessoas.