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Sistema Lean na gestão de saúde brasileira

Article-Sistema Lean na gestão de saúde brasileira

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"O que há é falta de um sistema de gestão capaz de coordenar as atividades e fazer com que o “fluxo” do cuidado aconteça de forma suave"

Especialista brasileiro em aplicação na saúde do sistema lean, o médico oncologista Carlos Frederico Pinto*, vem adotando a filosofia de gestão originária da Toyota que ganha espaço em hospitais e clínicas do mundo e do Brasil.

O médico estuda o tema há quase uma década e vem aplicando esse sistema no Instituto de Oncologia do Vale (IOV), onde tem conseguido resultados importantes em aumento da qualidade do cuidado e na economia de recursos. Inclusive o Grupo D´or, maior do país, se tornou sócio do IOV, primeira instituição a oferecer tratamento de câncer no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, com unidades em São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba.

Dr. Carlos Frederico Pinto Carlos Frederico Pinto, Diretor Executivo ‎do Instituto de Oncologia do Vale

Carlos é bem crítico quanto aos processos praticados pelas instituições de saúde brasileiras em geral: “Na maioria dos hospitais e sistemas de saúde não há coordenação das atividades, nem adequada transmissão das informações. E há desconexão entre os serviços. Isso gera um volume enorme de retrabalho, de movimento, de erros, por vezes muitos graves ou até mesmo letais, ineficiências de toda ordem que contribuem para elevar os custos e baixar o moral das equipes”.

Confira a entrevista:

Muita gente afirma que o problema da saúde no Brasil é a falta de recursos. Pesquisas mostram que somos um dos países que menos investe no sistema público em saúde: cerca de 490 dólares por habitante em 2012. Enquanto Canadá ou a Inglaterra investiram, por exemplo, entre três mil e quatro mil dólares. A Argentina, quase 700 dólares, o Chile, quase 550... Como é a visão da “gestão lean” sobre isso?

Carlos Frederico Pinto: Sim, o Brasil investe muito pouco em saúde. O sistema público investe perto de 500 dólares por ano. E o sistema privado, outros 500, o que dá pouco mais de 1000 dólares por habitante por ano no total. Independente do quanto se investir em saúde, sempre sofreremos da síndrome do “cobertor curto”: o aumento da longevidade e os próprios benefícios de uma saúde de melhor qualidade empurram os custos per capta para cima, levando-se em conta o modelo de gestão atual que não é de promoção de saúde, mas sim de tratamento de doenças. Isso sem falar de um perverso modelo de remuneração que paga por procedimento, sem considerar o desempenho e sem avaliar o valor agregado para esses procedimentos. De modo geral, os serviços de saúde só sobrevivem realizando muitos procedimentos, tratando de muitas doenças, mas nem sempre as doenças necessitam de tratamento. Um exemplo clássico são as cirurgias de coluna, quadril e joelho. Hoje podemos considerar que pelo menos metade delas não seriam necessárias ou não oferecem resultados melhores do que apenas o tratamento conservador. Mas como o sistema só remunera se houver a cirurgia...

Se não houvesse essa “prática” de procedimentos desnecessários, isso seria mais benéfico para todo sistema, incluindo o paciente?

CFP: Um estudo recente do hospital Albert Einstein com 166 pacientes considerou que aproximadamente dois terços das indicações cirúrgicas poderiam ser tratadas conservadoramente, gerando, só aí, uma economia de quatro milhões de reais. Do ponto de vista da gestão lean, precisamos fazer a pergunta básica: o que é importante para o cliente, no caso, o paciente? E nem sempre as decisões são tomadas sob essa perspectiva. Há que se mudar o modelo de gestão do sistema, assim como o modelo de remuneração e de avaliação de desempenho, que hoje é exclusivamente baseado em custo e volume.

Então, na sua visão, seria possível termos um bom atendimento, por exemplo, na saúde pública, mesmo com esses recursos que estão bem abaixo dos investidos por outros países, se a gestão disso fosse mais eficiente?

CFP: Sim, é possível, mas não existe mágica. Uma informação curiosa é que o parque tecnológico de exames de imagem (tomografias, ressonâncias etc.) instalado no Estado de São Paulo, com 44 milhões de habitantes, é maior que o instalado em todo o Reino Unido, que tem 64 milhões de habitantes. Mas as filas de exames aqui são estratosféricas. Na verdade, só a Cidade de São Paulo tem mais tomógrafos e ressonâncias que todo o Reino Unido. O que isso nos diz? Que os recursos estão mal utilizados. Ou há excesso de uso ou uso inadequado ou falta de acesso. Todos são desperdícios. E todos representam custos.

E esses desperdícios ocorrem tanto no setor público como no privado? Ou são impactos muito diferentes?

CFP: Apesar de o problema no setor público ser mais traumático, mesmo no sistema suplementar esse problema existe e é grande. Na maioria dos hospitais e sistemas de saúde não há coordenação das atividades, nem adequada transmissão das informações. E há desconexão entre os serviços. Isso gera um volume enorme de retrabalho, de movimento, de erros, por vezes muitos graves ou até mesmo letais, ineficiências de toda ordem que contribuem para elevar os custos e baixar o moral das equipes. Muitos pacientes têm seus exames, procedimentos ou cirurgias cancelados ou “perdidos” por erros primários, como horários incongruentes, por exemplo, quando se marca a consulta médica no mesmo horário do exame. Há ainda falta de manutenção básica e erros de preparo, quando, por exemplo, pede-se um exame, mas faz-se o jejum para outro tipo de exame. Nenhum desses erros pode ser atribuído a “falta de recursos”. O que há é falta de um sistema de gestão capaz de coordenar as atividades e fazer com que o “fluxo” do cuidado aconteça de forma suave.

Como você – que começou a estudar o sistema lean há cerca de uma década – vê, hoje, essa evolução da gestão da saúde no Brasil nesse período? Evoluímos pouco, muito, em termos... ?

CFP: O sistema vem evoluindo lentamente e com alguns resultados expressivos, ainda que pontuais. Mesmo no resto do mundo essa adoção do sistema lean na gestão da saúde é parcial. E muitas vezes, isso é confundido apenas com a adoção de “ferramentas” de qualidade associadas a processos de acreditação. No Brasil, nosso problema ainda está ligado à cultura da qualidade, algo muito recente no sistema de saúde, acredite se quiser. O Sistema Brasileiro de Acreditação tem apenas 16 anos, vem desde 1999, em comparação com os sistemas norte-americanos e europeus, alguns com mais de 60 anos de jornada. Isso se reflete no mercado: apenas 5% das instituições de saúde no Brasil possuem algum sistema de gestão certificado. As que atendem os requisitos internacionais – JCI e ACC – são menos de 100 no país todo! O lado positivo é que muitas estão podendo aproveitar os dois mundos: a cultura da qualidade vista sob a perspectiva lean, que é criar valor eliminando desperdícios e não necessariamente adicionando recursos.

Em que pontos as organizações – hospitais, clínicas, públicas ou privadas – melhoraram? Em que pontos permanecem iguais ou piores?

CFP: É notável o avanço na gestão da segurança e dos processos de infraestrutura. Há um grande movimento buscando desenvolver indicadores de desempenho e definindo boas práticas dentro e fora do sistema público. O que a maioria ainda não percebeu é que valor e desperdício são os dois lados de uma mesma moeda. E que eliminar desperdício é a forma mais eficiente de criar valor para o cliente, independente de onde você estiver, quem for seu cliente ou se você está no sistema público ou no privado.

Sabemos hoje que “adotar ferramentas” é apenas a “ponta do iceberg” do sistema lean. A base de tudo é fazer com que as pessoas, elas próprias, consigam fazer melhor seus trabalhos a cada dia, resolvendo problemas, eliminando desperdícios, agregando mais valor... Como é trabalhar isso na gestão de saúde brasileira?

CFP:

Funciona do mesmo jeito. É igual para qualquer indústria ou sistema. Como diz John Shook, “é melhor agir em busca de uma nova forma de pensar do que pensar sobre uma nova forma de agir.” Existe um ponto de transição em que as pessoas começam a pensar de forma lean e passam a fazer “kaizen” no restaurante, no banheiro de casa, em qualquer lugar. Não porque ficaram bitoladas, mas porque a vida fica muito mais simples, mais fácil, mas leve. A partir desse momento é responsabilidade dos líderes, nas empresas, serem também capazes de guiar esse movimento e coordenar os esforços em busca de um bem comum, de um resultado comum. É o que chamamos de enxergar o “norte verdadeiro”, o real destino de nossos esforços.

Como é o desafio de fazer com que médicos tenham essa consciência cotidiana de que precisam “fazer hoje melhor do que fizeram ontem”? Há muita resistência?

CFP: As resistências existem pelo medo do desconhecido, da mudança. A maioria dos médicos que vi participando de eventos de melhoria rápida – ou, como chamamos os “eventos kaizen” – adorou participar. Eles se tornaram se não entusiastas pelo menos apoiadores declarados. Mas também tem muito de sermos capazes de conseguir enxergar o verdadeiro propósito da mudança: facilitar, melhorar, agilizar ou baratear. E nessa ordem! Muito do que as pessoas chamam de “melhoria contínua” nos departamentos de qualidade dos hospitais são, na verdade, “caixas de maldades”: mais um formulário para preencher, mais uma tarefa, mais um relatório, mais uma “barreira”... Isso não é lean. Lean é mais com menos.

Alguns autores, como Liker e Hoseus, dizem que o sistema Toyota, embrião do sistema lean, vem, em parte, de algo da cultura japonesa que prioriza o trabalho coletivo e não tanto o individualismo. Na gestão da saúde, principalmente no Brasil, como você percebe essas duas “forças”?

CFP: Isso é interessante porque não conheço ninguém que seja mais sociável que o brasileiro. Mas acho que são questões distintas. Há métodos para se trabalhar em equipes e métodos para se desenvolver trabalhos envolvendo organizações complexas como hospitais. Já visitei diversas indústrias no Brasil que fazem lean com métodos e resultados semelhantes às suas filiais no exterior. Aliás, muitas têm desempenho melhor que suas “irmãs” estrangeiras. O mesmo vale para a indústria da saúde. Conheço também algumas pessoas que visitaram hospitais no Japão e ficaram muito desapontados com a falta de “lean” lá. Acho que um dos maiores problemas está na falta de compreensão do que Deming chamava de “doenças mortais das organizações”: estímulo à competitividade através de avaliações de desempenho “setoriais” e “individualizadas”. Conceitos que se manifestam em frases como “eu produzo mais do que o mercado é capaz de absorver, ganho bônus de produtividade. Mas você, vendedor, perde o bônus porque não vendeu o que eu produzi.” O que não se percebe nisso é que quem perde mesmo é a empresa, com excesso de estoque e custos operacionais. Organizações que não são capazes de enxergar o sistema “como um todo” estão fadadas ao fracasso.

Mas, insistindo um pouco mais nesse ponto, o trabalhador brasileiro que atua na saúde, o médico, por exemplo, tem dificuldade em trabalhar em equipe? Há um certo “individualismo” nesse setor que atrapalha a implementação do pensamento lean?

CFP: Deming dizia que 94% dos problemas estão no sistema, não nas pessoas. Curiosamente, a sociedade japonesa é organizada em uma hierarquia bastante rígida, mas o Modelo Toyota não preconiza essa hierarquização. O problema é como o sistema de ensino treina as pessoas e, depois, como reage e recompensa os resultados. Eu conheço diversos médicos que se recusam a trabalhar com equipes que não sejam a “sua equipe”. Curiosamente, a hierarquia nessas equipes é muito pouco valorizada. Na cultura lean, as pessoas são respeitadas pelas suas características técnicas e pelos seus papéis dentro do time, mas não pelo poder hierárquico ou senioridade. São times com papéis e responsabilidades claramente definidos, onde todos compreendem com exatidão o que deve ser feito, como deve ser feito e quando deve ser feito. Cada um tem claro para si quando algo está dando errado. Todos estão alertas quanto aos riscos e sabem como reagir a eles sem apontar dedos para os outros. Os problemas não são jogados para debaixo do tapete ou para que o “próximo da fila” resolva. Outro grande problema é que as escolas de medicina, enfermagem, farmácia... Enfim, todas as da área da saúde não ensinam o “cuidado” assim. A interface de trabalho não é definida nem desenvolvida ao longo do aprendizado. Felizmente, o modelo de “ensino baseado em problema”, que estimula o verdadeiro trabalho em equipes e fomenta um ambiente mais seguro de cuidado, vem ganhando espaço nas nossas escolas. Isso vem sendo ensinado nas faculdades, mas teremos de esperar algumas gerações para enxergar a mudança. Só que esse modelo também pode ser aprendido fora da escola. Em meu dia a dia de trabalho, todas as vezes que reunimos a equipe para um “evento kaizen”, começamos sempre com a pergunta: “Que problema queremos resolver?”

*Carlos Frederico Pinto também é autor do livro “Em busca do cuidado perfeito”, primeira obra 100% brasileira sobre lean na gestão da saúde, lançada recentemente pelo Lean Institute Brasil.

**No dia 3 de dezembro, o especialista fará palestra no “Lean Summit Saúde”, no World Trade Center, em São Paulo, quando vai detalhar boa parte da experiência de aplicar na gestão da saúde um modelo que nasceu na indústria automotiva. O encontro vai reunir ainda executivos e médicos brasileiros de hospitais dos grupos D´or, do São Camilo, do Bandeirantes, do São Francisco, da AACD, além da Biotec Hemoterapia, do Imed Group e também especialistas dos EUA, que vão compartilhar como estão adotando lean na saúde.

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