A saúde é um direito que resguarda a vida do ser humano. Trata-se de uma questão de justiça social e isonomia, que deve alcançar todos os cidadãos, independentemente de classe social. O conceito de saúde deve implicar o desenvolvimento amplo de políticas públicas inclusivas, que resguardem direitos em todas as esferas de tratamentos, nos setores públicos e privados.
Entendemos que o direito à saúde não deve ser limitado, como temos observado em posicionamentos de autoridades e, até mesmo, do Poder Judiciário. Limitar o acesso imediato, categorizando instâncias e regras em detalhes, pode levar ao fracasso do direito de acesso e à limitação da garantia da vida do paciente.
Diz-se, na esfera pública, pela “reserva do possível”, que os recursos são finitos. Porém, antes de adentrar essa questão, é necessário promover um amplo diálogo sobre as perspectivas reais e os indicadores que mostram que qualquer limitação ao Judiciário implicará prejuízo zero para a qualidade de vida do cidadão brasileiro. O mesmo raciocínio deve ser aplicado à saúde suplementar.
Defender a limitação do acesso à justiça, sem mapear todas as possibilidades que possam levar ao cerceamento da vida do paciente, à morosidade nas autorizações, às limitações nos tratamentos e às demais práticas nocivas aos usuários, como as que observamos atualmente, é um crime contra a dignidade humana.
A realidade não se pauta em planilhas financeiras. Antes disso, é preciso ter consciência de que cada número ali contido equivale a uma vida e reflete em várias outras, como as de filhos, esposos, esposas, mães, pais e demais familiares.
Falar em adequação e fluxos para que a judicialização da saúde ocorra de forma eficiente exige, antes de tudo, a apresentação de dados que possibilitem, na prática, o melhor atendimento ao paciente, sem que o sistema de saúde seja ainda mais marcado por sequelas que resultem em perdas de vidas.
Algumas respostas devem ser claras:
- • Qual a garantia de que, com os critérios apresentados, o sistema de saúde no modelo atual conseguirá atender todos os brasileiros que necessitam de atendimento?
- • Quais políticas públicas foram previamente instituídas para embasar decisões ou propostas que buscam limitar a judicialização?
- • Quem serão os responsáveis, inclusive criminalmente, caso haja um aumento expressivo de mortes por negativas de tratamentos que hoje só são possíveis por meio do acesso à justiça?
- • Qual será o fluxo exato, com prazos definidos, para que o Estado e os planos de saúde concedam o tratamento necessário?
- • Quem são os responsáveis pela falta de políticas públicas e pela má gestão dos sistemas de saúde pública e privada que não conseguem atender a população?
Esses questionamentos são apenas um ponto de partida. Antes de se pronunciar ou decidir pela limitação do acesso à justiça, é fundamental que tais questões sejam respondidas. A ética não se reduz ao campo teórico. Pelo contrário, ela é a forma mais efetiva de mostrar que a saúde não deve se submeter aos interesses financeiros individuais ou de grupos, nem se restringir à má gestão de recursos públicos e privados. Deve, sim, ser o foco de tomadores de decisão que priorizem a qualidade do atendimento ao paciente, obrigando gestores a adequarem seus processos em defesa do bem mais precioso: a vida humana.
Antes de discutir a limitação da judicialização, é necessário debater as responsabilidades. Embora não seja possível prever todos os tratamentos, diretrizes eficazes que conduzam à defesa da vida são certamente viáveis, e os responsáveis por implementá-las são identificáveis. Somente quando todas essas “certezas” forem expostas de forma clara e objetiva para a sociedade, com diretrizes coesas que mostrem que a saúde no Brasil seguirá caminhos de isonomia e garantias de tratamento eficaz e ágil para todos os cidadãos, poderemos pensar em discutir a limitação da judicialização. Ou melhor, certamente essa discussão sequer será necessária, pois, nesse cenário, a judicialização deixará de ser indispensável.
Os caminhos éticos são as balizas necessárias para a redução da judicialização. No entanto, para que isso ocorra, os stakeholders do setor de saúde devem estar dispostos a um diálogo verdadeiro, com o objetivo de ajustar condutas e promover uma autorregulação efetiva, sempre visando os melhores resultados para o paciente. Quem está disposto?
O Instituto Ética Saúde já possui um Grupo de Trabalho em desenvolvimento, responsável por mapear a legislação e a regulação do setor no que tange à ética, à integridade e à transparência. O objetivo final é propor adequações necessárias (sejam revisões ou inovações) e induzir a autorregulação privada. Convidamos todos os interessados, que compartilham desse propósito maior de garantir a estabilidade da saúde no Brasil, da indústria ao paciente, a contribuírem com este trabalho.
Defender a saúde deve ser uma prioridade ética e social, não limitada por interesses financeiros. Muitas vezes, a justiça é o último recurso para garantir o direito à vida.
*Filipe Venturini Signorelli é Diretor Executivo do Instituto Ética Saúde.