Em um encontro de ex-alunos da FGV falei sobre minha experiência no território do Acre, minha convivência com chefes de etnias indígenas do Norte e a minha atuação em projetos voltados para a população negra. Desde então a pergunta que mais reverbera em mim é: você, profissional da saúde, já reparou na cor da pele do seu paciente?

Quando olhamos para nossa história como país, e ainda considerando a realidade no que se refere a acesso à saúde, saber a cor do nosso cliente/paciente é cuidado centrado na pessoa. E ao fazermos um recorte específico para a população negra no Brasil, essa verdade salta ainda mais aos olhos. Eu como mulher, negra – de pele clara – e gestora de ações no SUS, nem preciso dizer como este tema é primordial para mim e como ele me atravessa.

Começo aqui trazendo alguns números fundamentais para essa análise; a população brasileira hoje supera os 212 milhões de pessoas (IBGE), dos quais 57% são autodeclarados negros (somas dos grupos formado por pessoas que se declaram pretas ou pardas). Ou seja, mais da metade da população, o que evidencia que estamos longe de sermos o que se chama de minoria. Pelo menos dos pontos de vista quantitativo. Desse total de pessoas negras, quase 170 milhões, ou cerca de 80%, dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde, o nosso SUS. E é justamente esse grupo que, historicamente, mais sofre em razão de doenças crônicas e infecciosas, mortalidade materna e infantil (este índice me toca pessoalmente), violência, desnutrição dentre outras enfermidades.

Para um país com origem escravocrata como o nosso, com políticas ainda incipientes de inclusão e diversidade, estes números acima talvez não cheguem a surpreender. Porém, daqui em diante eu espero sim causar, no mínimo, algum estranhamento: segundo a Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do Governo Federal, 41,5% das mulheres negras com mais de 40 anos nunca fizeram uma mamografia. Se comparemos a mulheres brancas da mesma idade, esse número cai para 26,7%. E essa desigualdade também se estende aos exames de colo de útero, uma vez que 18,4% das mulheres negras nunca o fizeram, contra 13% das mulheres brancas. Já em mama são 32,7% das negras nunca o realizaram exames, frente a um número de 19,3% das mulheres brancas.

Não obstante, uma pesquisa de 2023 do Ministério da Saúde apontou que o número de mulheres negras que morrem durante o parto é mais que o dobro do registrado que o de mulheres brancas: enquanto entre as mulheres brancas os casos de morte durante o parto foram na ordem de 46,56 para cada 100 mil nascidos vivos; para mulheres negras, o número chega a 100,38 óbitos para cada 100 mil.

Quando falamos de violência obstétrica, por exemplo, são diversas violências sofridas por essas mulheres. Além de muitas vezes elas desconhecerem seus direitos, não é incomum que as equipes assistenciais não disponibilizem um profissional para recomendar se seria melhor o parto normal ou a cesárea e quais são os riscos de ambos. Elas também afirmam que as equipes assistenciais as quais estão submetidas tomam a decisão por elas sobre qual tipo de parto ter. Vale lembrar que é função da equipe assistencial orientar a paciente a realizar o procedimento mais seguro, sem imposição. A imposição neste caso também caracteriza uma forma de violência.

Volto aqui ao título deste texto para que possa ficar mais claro o porquê afirmo que a saúde tem cor.

É notório que já tivemos avanços, incluindo algumas políticas importantíssimas voltadas a este grande grupo, como Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que agora tem um desafio gigantesco de se afirmar e ser executada na ponta, nos municípios, onde realmente as ações acontecem. Mas temos ainda desafios gigantescos, proporcionais ao tamanho do país. 

Outro ponto que acredito que valha ser ressaltado são os três princípios básicos e norteadores do SUS: a integralidade, a universalidade e, o que eu particularmente julgo o mais importante, a equidade; é por meio dela que podemos tratar os diferentes de forma diferente, isto é, oferecer o que é importante na justa medida que é necessário a quem, de fato, necessita. Isso do ponto de vista da saúde. Assim, a equidade figura como ferramenta não só de inclusão, mas de Justiça Social, conceito fundamental que visa a construção de uma sociedade mais equitativa e justa, onde todos os indivíduos tenham acesso igualitário a direitos e oportunidades, independentemente de sua origem, cor, gênero ou condição econômica. E por isso que eu me levanto e dedico meus dias por mais equidade.

Eu ressaltei os índices vividos por mulheres negras no que se refere a mortalidade materno infantil, pois eu vivi recentemente um drama familiar:  minha sobrinha negra retinta, com marido negro retinto, ambos jovens da periferia, fizeram parte desta estatística. MP, jovem sem instrução engravidou usando DIU e descobriu a gestação de alto risco tardiamente e sua bebê nasceu prematura. E por diversas situações de cuidado (ou não cuidado) o bebê veio a falecer em novembro em um hospital público de São Paulo.

Sua consulta tem cor? Sim! A consulta tem cor, tem DOR, tem FOME, tem credo, tem CEP ou não, a depender da condição de moradia e se a pessoa tem recursos suficientes para ser tratado em grandes centros com a dignidade a qual todo cidadão deveria receber.

Mais do que usar os meus privilégios, meu ponto de partida é de quem vive este cenário antagônico; ao mesmo tempo que eu e meu marido somos privilegiados em recursos financeiros e de saúde, meus amigos e familiares vivem em outra arquitetura social e são parte integrante das estatísticas aqui postas.

Uso então mais uma vez meus privilégios, desta vez como colunista, para trazer um tema tão relevante neste que é o mês que se reverencia a consciência negra.