O que é o limite? Onde está o limite? Quem decide o limite? O antropólogo e sociólogo Bruno Latour (1947-2022), conhecido por seus estudos em ciência e tecnologia, “faleceu de câncer pancreático exatamente um mês antes do lançamento do ChatGPT (novembro/2022)”. Latour foi um dos mais brilhantes pensadores deste século. Seus estudos sobre projeções tecnológicas dentro da civilização são monumentais, e, hoje, cada vez mais atuais. Sua obra “Onde Aterrar?” (2017) discute como as novas infraestruturas tecnológicas, políticas e ambientais moldam o destino da humanidade. Ele passou a vida ‘desafiando a ideia de que as tecnologias são apenas ferramentas neutras’. Dizia que os objetos têm agência que molda nossos hábitos, nossas decisões e nossas estruturas de poder. Deveria ter vivido por mais algum tempo para apreciar a magnífica reviravolta ‘tecno-cognitiva’ dos últimos meses.

Latour desmontou a noção de que existem limites naturais e fixos entre humanos e não-humanos, entre natureza e sociedade, entre tecnologia e cultura. Para ele, não há “fora” do mundo, apenas “redes que nos conectam”. O que chamamos de “limites” são, na verdade, híbridos, ou zonas misturadas onde diferentes forças disputam espaço. Seu exemplo de cabeceira: crise climática. Quem a reivindica? A ciência, a economia ou a política? Quem impõe nossos limites de superação ou extinção? Para ele, o clima não é um “lá fora”, um distante. Seu “limite” não é um lugar estático, não é uma paisagem inatingível ou algo dos outros, mas sim um território disputado, onde agências diversas (humanas e não-humanas) lutam para redefinir suas regras todos os malditos dias…

O que representam as Inteligências Artificiais Generativas no quadro latouriano? Provavelmente ele diria que o ChatGPT é um “híbrido perfeito”. Ele não é um “outro” e nem um “mesmo”. Ele está “entre”, desestabilizando o que pensávamos sobre linguagem, autoria e cognição. Latour combatia a ideia de que a ciência e o conhecimento surgem de mentes isoladas e geniais. Para ele, toda produção do saber é um ato coletivo, distribuído entre humanos e não-humanos. Mas ele não pôde ver o ChatGPT, o Gemini, ou Claude, Grok e tantos outros modelos. Sua morte, um mês antes da OpenAI apresentar o GPT3.5, marca um limite quase mítico. Ele partiu no instante exato em que a fronteira entre humano e máquina sofreu o seu maior desmonte.

E agora nós estamos aqui, desse lado da fronteira, sem Latour para nos guiar, mas com sua bússola. Seu pensamento nos obriga a não aceitar a IA como um fenômeno isolado, mas como ‘uma mutação de redes sociotécnicas que reorganizam o mundo’. Ao contrário dele, fomos dragados pela Cognição Artificial, pelos LLMs, pelos Transformers e por milhares de Aplicações que saíram desse ‘útero algorítmico’ nos últimos 30 meses.

Nenhuma outra área sofrerá tantas mutações, convulsões e redefinições como o bioma da Saúde. Sem exagero, parece que as “IAs-notáveis” (essas que emergiram nos últimos meses e não as que já existiam em laboratórios e estudos avançados há décadas) nasceram para a biosfera clínico-assistencial. Nenhuma indústria de serviços parece tão predisposta às IAs quanto a medicina aplicada.  

As ‘ias-notáveis’ são especialmente fortes no tratamento de dados pretéritos, como o “histórico do paciente (EHR)”, ou anamnese. Seu potencial de análise crítica em dados médicos legados é imenso e veloz. Um Agente IA Médico é capaz de varrer um prontuário clínico em segundos (papel ou digital). Sua capacidade de diagnosticar imagens clínicas não tem paralelo na história da ciência biomédica. Pesquisadores do Imperial College London, por exemplo, em conjunto com o Google, apresentaram uma nova plataforma chamada “Co-scientist”. Embora ela facilite o trabalho de pesquisa dos cientistas, seu objetivo não é substituí-los, mas sim aliviar suas tarefas de maneira surpreendente. Um exemplo são as investigações realizadas nos últimos anos sobre a “resistência aos antibióticos”. Pesquisadores do Imperial College dedicaram uma década inteira ao estudo dessa questão, envolvendo inúmeros recursos e fundos alocados para encontrar uma solução que pudesse ser implementada o mais rápido possível. O “Co-scientist” foi submetido à mesma demanda, nas condições existentes e sem ter acesso aos resultados da pesquisa humana. A plataforma conseguiu chegar a conclusões semelhantes em apenas dois dias.

Mas onde estão essas aplicações de IA orientadas à Saúde ou à prática médica? Quem está produzindo resultados tangíveis? Que sistemas de saúde, em quais países, já utilizam as “Health AI Apps”? Pela primeira vez no Brasil e na América Latina teremos a oportunidade de comprovar algumas das mais importantes aplicações em IA na Saúde. O “Congresso Internacional Future Digital Health (FDHIC 2025)”, a ser realizado em maio com a Feira HOSPITALAR, vai apresentar uma cesta dessas tecnologias. O evento “Showtime: Revelando 21 IAs Globais para Saúde 5.0 busca exibir  à cadeia nacional e latino-americana de saúde um lote dessas IAs, escolhidas a dedo para atender as demandas dos sistemas de saúde pública e suplementar do país. Dos dias 21 a 23 de maio, o congresso abrigará cerca de 60 convidados de mais de 10 países, em suas 42 conferências e mais 9 debates com lideranças nacionais do setor.

O alcance do FDHIC está centrado em 3 eixos de interesse: (1) aplicações com foco no usuário final (pacientes); (2) outras tendo como alvo o Sistema de Saúde (hospitais, labs, medicamentos, etc.); e (3) aplicações com foco nos profissionais de saúde (médicos, enfermagem, terapeutas, etc.). Com o apoio de patrocinadores como Google, Microsoft, AWS, MV, entre vários outros, o congresso será um show direcionado aos“decision-makers” do ecossistema nacional de saúde. Não é um evento para curiosos ou ‘amadores’ do setor. Não haverá temáticas iniciadoras nem conteúdos primários. A lógica do FDHIC será essencialmente prático-assistencial, ou seja, trazer “soluções redondas”, já utilizadas por milhões de usuários, comprovadas por estudos publicados e de acesso imediato (confira no podcast de 8 minutos feito inteiramente com IA).

Em nome da possibilidade de exibir demonstrações inéditas para a audiência do FDHIC, algumas apresentações internacionais serão virtuais (a impossibilidade de combinar agendas, fuso horário e a documentação alfandegária de meia centena de executivos obrigou a curadoria do evento a ceder nessa direção em alguns casos). Vale ressaltar que todas as companhias das ‘21 Health AI Apps’ foram convidadas sem qualquer ônus ou qualquer investimento de patrocínio. O FDHIC está em sua 9ª. Edição, sendo promovido e realizado pelo grupo britânico Informa Markets, a maior organização de eventos corporativos do Ocidente, que organiza mais de 400 simpósios e trade-shows ao ano.

Entre os provedores de Aplicações Health-AI, será possível conhecer a holandesa Pacmed, que mostrará sua plataforma no speech “Como IA está Transformando Dados Hospitalares não-estruturados em Informações-estruturadas”; ou a dinamarquesa Ward 24/7, apresentando seu produto na conferência “Detecção da Deterioração em Enfermarias Gerais por meio do Monitoramento Contínuo de Sinais Vitais em níveis de Média e Baixa de Acuidade”, cujo principal fator é a rápida intervenção das equipes de enfermagem nas complicações e inconformidades dos pacientes (a empresa faz parte do WARD Project, uma iniciativa apoiada pela Innovation Fund Denmark).

Segundo a OMS, até 2030 o mundo precisará de 80 milhões de médicos e enfermeiros, com um déficit previsto superior a 18 milhões de profissionais de saúde. Nessa direção, avançam as aplicações de IA aproveitando mais de 6,3 bilhões de usuários de smartphones no mundo. A israelense Binah.ai, uma das aplicações de ‘medical self-care’ mais utilizadas no mundo, estará no evento apresentando uma inovação, tema de sua palestra: “Check-up Remoto utilizando Tecnologia IA”. Seu aplicativo parasmartphone permite ao usuário identificarpressão arterial, frequência cardíaca, variabilidade da frequência cardíaca, saturação de oxigênio, frequência respiratória, estresse simpático, atividade parassimpática e quociente pulso-respiração (PRQ).A nova geração do aplicativo Binah.ai possibilita também identificar: hemoglobina, hemoglobina A1c, risco de ASCVD, risco de pressão alta e risco de hemoglobina baixa, risco de HbA1c alto, risco de glicemia de jejum alto, risco de colesterol total alto, risco de tuberculose e idade cardíaca.

A norte-americana PathAI também se apresentará no evento mostrando como IA está expandindo a precisão e a eficiência do diagnóstico patológico. Sua apresentação (“IA na Patologia de Precisão”) mostra porque sua plataforma é utilizada por 90% das 15 maiores empresas biofarmacêuticas do mundo. Em 2024, a empresa desenvolveu uma parceria estratégica com a Quest Diagnostics (um dos maiores players de patologia diagnóstica do mundo, com 50 mil funcionários). A PathAI Diagnostics, braço da empresa para serviços de patologia anatômica e digital, está agora associada a Quest. A PathAI é hoje uma das mais inovadoras empresas do mundo em patologia de precisão. Seu speech é um notável painel das IAs na patologia digital.  

Ainda dos EUA, teremos mais duas grandes atrações: (1) a Nuralogix, com sua aplicação Anura, que utiliza a tecnologia Affective AI™ para medir uma variedade de estados fisiológicos e psicológicos humanos por meio de uma câmera convencional. Em 2024, a Anura Telehealth venceu a 3ª Competição Anual de Telehealth da IEEE Standards Association, ultrapassando 52 outras inscrições de 23 países (com 11 finalistas). Aliás, sua coleção de prêmios por inovação só cresce. Em 2023, por exemplo, foi laureada com o CES® 2023 Innovation Awards na categoria “Digital Health”’. Seu speech no FDHIC 2025 será “Monitoramento de Cuidados baseados em Óptica Transdérmica”; (2) já aKanahealth.ai, sediada na Califórnia, traz uma proposta ousada: utilizar sua aplicação para desenvolver um “Superterapeuta”. Seu copilot em IA cria uma ‘rede agêntica’ de assessoria ao profissional de saúde mental, suportando o envolvimento, o diagnóstico e o apoiando ao tratamento até chegar ao acompanhamento progressivo do paciente. Sua conferência: “Plataforma Copilot IA para Terapeutas e Cuidadores Mentais”.

Entre outras Aplicações, teremos da Índia a Tricog, uma plataforma de IA para acelerar a previsão de problemas cardíacos, que, até o momento, já diagnosticou mais de 24 milhões de pacientes, salvando mais de 800 mil vidas. O problema cardiovascular e seus desdobramentos são uma máquina de triturar terráqueos: as doenças cardiovasculares eliminam anualmente cerca de 17,9 milhões de vidas, respondendo por 32% de todas as mortes globais (os ataques cardíacos sozinhos são responsáveis ​​por 85% de todas as mortes relacionadas a doenças cardíacas). A solução InstaECG da Tricog aproveita a experiência humana e a inteligência artificial para fornecer aos médicos interpretações instantâneas, precisas e consistentes de ECGs. No speech “Suporte a Doenças Cardiovasculares impulsionado por IA” a empresa exporá suaaplicação, certificada pelos principais padrões regulatórios do mundo (FDA, HIPAA, ISO, etc.).

Outra empresa líder em pesquisa de IA na saúde,também dinamarquesa, é a Corti.ai, que está surfando nos ‘agentes conversacionais’ e na ‘pesquisa aplicada’. Recentemente, lançou o Corti Assistant, uma plataforma que oferece feedback em tempo real para médicos, elevando a ‘Assistência de IA’ ao nível de profissionais altamente experientes. Atualmente, 250 mil pacientes recebem cuidados diários de provedores que utilizam a tecnologia Corti. Sua conferência, “IA para Codificação Médica, Automática e Assistida”, promete ser um show de inovação, mostrando para onde vão os agênticos no bioma da Saúde.

Às portas de Edge AI e Quantum AI — duas tecnologias que, como surfistas atentos, aguardam a onda hiperbórea da AGI (Inteligência Artificial Geral) — as ‘Health-AIs’ se infiltram em todas as camadas das cadeias globais. Todavia, é no diagnóstico clínico que a maturidade da cognição artificialdá seu grande salto. A holandesa Aiosyn mostrará um pouco dessa potência no FDHIC com o speech “Patologia de Precisão em Câncer e Doenças Renais utilizando IA”. Seus algoritmos de patologia alimentados por IA integram-se aos fluxos de trabalho da patologia padrão, permitindo diagnósticos e estudos clínicos em qualquer lugar e a qualquer hora. Um de seus estudos de caso mais importantes refere-se à ‘automatização do controle de qualidade de slides digitais da Radboudumc com a plataforma Aiosyn’ (a Radboud University Medical Center é uma das mais importantes Academias Médicas do mundo). Hoje, a empresa é reconhecida mundialmente como um dos mais especializados centros no desenvolvimento de IA para diagnóstico e pesquisa de câncer e doenças renais.

Muitas outras aplicações de IA em Saúde estarão presentes no FDHIC 2025, sendo o evento a maior amostra dessa vertical na América Latina. Da mesma forma, a maioria dos ‘grandes provedores globais de IA’, como Google, Microsoft, AWS, etc., estarão presentes no congresso mostrando seus modelos e produtos, com speeches internacionais orientados às cadeias médico-assistenciais.

Maio é sempre o mês da HOSPITALAR e do FDHIC, que terá em 2025 mais de 10 horas de debates, com temas emergentes e instigantes, como: “Agentes Médicos em IA podem triplicar a performance quantitativa e qualitativa dos profissionais de Saúde”; ou o instigante debate: “Nos próximos 10 anos, qual das três categorias sucederá o médico? (1) o médico propelido por IA; (2) os Agênticos Clínicos propelidos por médicos; ou (3) as Máquinas Autônomas governadas e auditadas por médicos?”; ou ainda um debate positivista “IA-SUS: última chance do Estado para sustentar a Cobertura Universal de Saúde”, entre outras conversas.

Seria muito instigante pensar o que Latour, Turing, Stiegler e tantos outros mestres diriam se estivessem sentados na primeira fileira do “Future Digital Health International Congress”. Difícil deixar de homenageá-los. Não existiria Sam Altman sem eles, nem Musk, tampouco o mais brilhante dos humanoides. Outrora, os grandes limites científicos e tecnológicos eram ultrapassados a cada século; depois, a cada década; hoje, a cada 100 horas. Se o ‘Limite’ fosse um ente, uma abstração metafísica, uma engenhosidade criada por humanos para a superação, como essa ‘eminência’ se portaria diante das “21 Aplicações de IA na Saúde” que, há três anos, seriam consideradas delírios estúpidos? Talvez houvesse pânico. Talvez surpresa. Ou talvez só se escutasse: “Eu não falei que era possível?”

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)
Curador FDHIC