Costumo começar minhas palestras falando sobre os teoremas 1 e 2 do Dr. Deming (1900-1993), estatístico, professor e consultor norte-americano, conhecido como um dos criadores do método PDCA – sigla das expressões em inglês plan, do, check e act – e da administração moderna, tendo sido grande inspirador da Toyota nos anos 60 do século passado. São eles: 1 – “ninguém dá a mínima para os resultados”. E 2 – “estamos sendo arruinados pelos nossos melhores esforços” ou “um sistema ruim sempre vence uma boa pessoa”. Mas o que ele realmente quis dizer com isso?
Podemos tomar diversos caminhos em busca de uma resposta. Mas vou seguir pelo que iniciamos na coluna do mês passado, onde afirmei que é uma obrigação do líder dar oportunidades para que as equipes possam fazer seu trabalho bem-feito, de forma gratificante e criativa.
Líderes preguiçosos não agem assim
O que são líderes preguiçosos? Liderança preguiçosa é um termo que foi criado pelo Dr. Leonard Wong, um engenheiro e psicólogo do exército norte-americano, quando abordou o problema do declínio ético dentro do exército.
Os militares sabem há muito tempo que, no desenrolar de uma guerra, os valores morais e éticos são tão ou mais importantes que habilidades com armas ou tecnologias complexas. Na verdade, foram os fuzileiros navais americanos que cunharam também o termo “tecnologias leves” (habilidades sociais e comportamentais relacionadas ao desempenho de um time), em contraponto às “tecnologias pesadas” (habilidades no manuseio de armas e munições, explosivos ou como pilotar um avião).
Ao estudar o declínio ético no exército, Dr. Wong percebeu que ele começa com pequenos desvios, coisas mínimas, tipo preencher um formulário distorcendo dados como, por exemplo, garantindo que não irá dirigir um veículo do exército sem ultrapassar o limite de 75 km/h. Só que, em pouco tempo isso se torna um “lugar comum”, uma coisa que “todo mundo faz” e que “não tem muita importância porquê ninguém lê mesmo”.
Wong identificou que, por conta de muitos procedimentos e um grande volume de burocracia nas forças armadas, as pessoas, cansadas de tantos procedimentos, criam formas de burlar ou se desviar dessas atividades. Progressivamente, pequenos desvios aqui e ali se transformavam em relatórios importantes, mas totalmente irreais, desconectados da realidade, criando desinformação, riscos e custos desnecessários.
Líderes preguiçosos gostam de encontrar soluções em formulários, relatórios e burocracia. E diante de algum problema ou mau desempenho, sugerem o desenvolvimento de um novo processo de controle similar a esses procedimentos burocráticos observados por Wong.
Quando olhamos para nossos hospitais, enxergamos os mesmos problemas: excesso de formulários e processos irrelevantes, cujas métricas em nada se relacionam com a realidade ou com aquilo que é realmente importante. No entanto, consomem todo o tempo de trabalho das pessoas que, já sobrecarregadas, preenchem displicentemente esses inúmeros formulários e checklists.
A resposta preguiçosa para um problema é criar um novo processo, mais um item de controle para o dia a dia, que apenas sobrecarrega as equipes, mas nada informa. É só ruído. Isso quando não produz efeitos inesperados e nefastos na gamificação dos resultados, em detrimento dos pacientes (lembrando que sistemas complexos adaptativos são um tanto contraintuitivos e produzem esse tipo de resultado com frequência).
No Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, um dos mais antigos e maiores do mundo, conhecido pela sigla NHS (National Health Service), os chamados das ambulâncias eram classificados por risco, definindo a prioridade: os de maior risco (categoria A) deveriam ser atendidos em até 8 minutos. Os outros poderiam esperar mais, entre 14 e 17 minutos.
Com infraestrutura limitada e as variáveis como volume de chamados, distância até o destino e condições de tráfego, o serviço de ambulâncias não era capaz de atender de forma eficiente os chamados. O sistema deveria ser revisto e redesenhado, mas não foi isso o proposto. Criaram apenas uma forma de bonificar o bom desempenho.
Quando isso ocorre, ou seja, quando o sistema impõe metas impossíveis, as pessoas jogam com o sistema. Ou como disse Isao Yoshino, um dos pioneiros da Toyota e mentor de John Shook (um dos mais importantes estudiosos do pensamento lean): “Se você exigir o sucesso sempre, as pessoas vão mentir pra você!”
Assim, o que fizeram as equipes gestoras das ambulâncias? Buscaram alternativas para bater a meta e não perder os pontos de desempenho, o que poderia impactar nos seus vencimentos. Alguns deixaram rastros óbvios, como corrigir a posteriori a prioridade, criando um grande e improvável pico de atendimento exatamente aos 8 minutos, limite de tempo para os chamados de alto risco.
Outros definiam a categoria de risco dos chamados de acordo com a distância relativa ou condições de tráfego, fazendo com que quase todos os eventos considerados de alto risco ocorressem dentro de um certo raio de distância da central de ambulâncias.
Pessoalmente, já cansei de ver líderes resolverem seu problema de mau desempenho financeiro entrando em reuniões com várias outras lideranças com uma simples e brutal pergunta: “Quantas pessoas teremos de demitir para bater a meta do semestre?” ou “Quantos pacientes teremos de internar no pronto socorro esse mês? Quantas tomografias? Quantas ressonâncias?”
Liderança que vilificam o trabalho e a condução dos seus liderados em busca de um bônus financeiro não acham que estão fazendo nada de errado. É um lugar comum no mercado. No entanto, isso destrói o orgulho de fazer um trabalho bem feito, vilipendia o bom trabalho e a qualificação dos seus profissionais. Em nenhum momento esses líderes discutem como melhorar a qualidade dos serviços para otimizar o desempenho operacional.
Desde os pequenos desvios para administrar o excesso de burocracia até o completo declínio ético de uma cultura organizacional há uma longa jornada de pequenas mentiras, vistas grossas e tolerância até o descaso total, com seu lado negro: o jogo dos negócios joga também com a vida e o bem estar das pessoas – sejam clientes, pacientes ou colaboradores.
Voltando ao problema do sistema que, não importa, seja bom ou ruim, sempre vencerá – porque todo sistema está organizado e operando para alcançar o seu propósito explícito ou velado –, muitas organizações possuem missões e visões inspiradoras, confrontadas com práticas assustadoras. Sistemas e organizações de saúde onde os propósitos, mesmo que velados, não estejam relacionados ao bem estar dos clientes e não possuam uma visão de longo prazo nesse sentido estão expostos a esse declínio ético para cumprir suas metas.
Visões de curto prazo, focadas no desempenho atual, sem refletir sobre os impactos de demissões periódicas, criam culturas voltadas ao curto prazo, onde as pessoas se comportam de acordo. “Como sei que sou dispensável, demissível apenas para bater uma meta financeira, me comporto de acordo, entro no jogo.” E essa cultura adota práticas que burlam as regras, passam pelos treinamentos obrigatórios atentos às redes sociais e negligenciam procedimentos relevantes de segurança. As pessoas sabem que não estarão lá quando isso virar um problema. É sempre um projeto de curto prazo. Como diria o Dr. Deming, ninguém dá a mínima.
Sistemas robustos possuem visão clara e desenvolvem relacionamentos e planos de longo prazo, voltados a criar valor para seus clientes e gerar ganhos justos para a organização, seus acionistas e colaboradores – o que garante a sustentabilidade do próprio sistema no longo prazo. Essas organizações entendem que bons resultados no curto prazo não garantem bons resultados no longo prazo.
Talvez tudo isso explique o porquê de muitas das grandes corporações de saúde no Brasil tenham, hoje, seu valor de mercado reduzido a 30%, ou ainda, a menos de 10% do seu valor original.