Você está preparado para morrer por falta de diagnóstico? Pode ser que sim. Mas você está preparado para morrer por excesso de diagnósticos? Ou seja, morrer devido à quantidade de diagnósticos acumulados ao longo de um período sem acesso ao tratamento necessário. Esse acúmulo pode ser a próxima realidade que os Sistemas de Saúde terão de enfrentar: diagnósticos demais, cuidados de menos. Um mundo de hiperdiagnóstico colidindocom um sistema hipoassistencial.

Dados revelam que 47% da população mundial não tem acesso sequer às ferramentas de diagnóstico mais básicas — que, apesar de essenciais, representam hoje apenas 2% de todos os gastos com saúde. Mas, nos últimos meses, o ecossistema de saúde foi bombardeado por notícias sobre o “poder das IAs na obtenção de diagnósticos médicos”. Sua capacidade de identificar doenças em seus estágios iniciais, provendo medicina preditiva, preventiva e personalizada, é avassaladora (aproximadamente 75% dos mais de 500 algoritmos de IA aprovados pela FDA estão focados em radiologia diagnóstica). Diagnosticar é sempre um processo de entrar em vielas para ver se são becos sem saída. IA faz isso muito bem.

Veja abaixo alguns exemplos reais da expansão cambriana das IAs no campo diagnóstico:

  • Modelos de IA já são usados ​​com sucesso para prever a resistência antimicrobiana (RAM) em Salmonella não-tifóide, demonstrando alta precisão na estimativa de valores de concentração inibitória mínima (CIM).
  • Redes neurais recorrentes (RNNs) e convolucionais (CNNs) já são empregadas na construção de modelos de IA voltados a diagnósticos rápidos de hemocultura em UTIs. Um modelo baseado em LSTM prevê com precisão infecções na corrente sanguínea com base em parâmetros clínicos de pacientes internados.
  • Algoritmos de suporte à decisão já são utilizados para otimizar prescrições ambulatoriais de antibióticos em infecções do trato urinário (ITUs) não-complicadas. Modelos treinados em registros eletrônicos reduziram o uso de antibióticos de segunda linha em 67%. Em paralelo, a triagem molecular orientada por IA tem identificado novos peptídeos antimicrobianos (AMPs) a partir de genomas microbianos.
  • Plataformas de IA treinadas com dados obtidos por espectrometria de massa já conseguem detectar com eficiência a resistência antimicrobiana em cepas bacterianas. Redes neurais convolucionais (CNNs) também têm sido aplicadas para classificar padrões morfológicos em lâminas coradas pelo método de Gram, com 95% de precisão
  • Imagens oncológicas analisadas por IA já detectam e classificam tumores, prevendo respostas ao tratamento e monitorando a evolução dos pacientes em diversos tipos de câncer. Em cardiologia, a IA aprimora a detecção, segmentação e diagnóstico de doença arterial coronária, insuficiência cardíaca e anomalias vasculares
  • A análise de imagem abdominal assistida por IA já otimiza a identificação de lesões hepáticas, pancreáticas e renais. O uso de radiomics — abordagem que integra dados de imagem, variáveis clínicas e desfechos — permite prever risco de doença, tempo de sobrevida e eficácia terapêutica
  • Em 2025, cinco hospitais chineses passaram a utilizar o eCMoML, ferramenta de IA para previsão de sobrevida em pacientes sob suporte VA-ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea veno-arterial). Utilizando 25 marcadores de saúde — como exames de sangue, sinais vitais e níveis de oxigênio — o sistema prevê a probabilidade de sobrevivência em 28 dias, com 93% de acurácia. Testes clínicos demonstraram que os planos de tratamento foram ajustados em 80% dos pacientes, resultando em uma redução de 12% na mortalidade (fonte: Scientific Reports).
  • O MELD Graph (Multicenter Epilepsy Lesion Detection Graph), plataforma de IA desenvolvida pelo King’s College London e pela UCL (University College London), tem transformado o tratamento da epilepsia ao identificar 64% das anormalidades cerebrais que passam despercebidas pelos radiologistas.
  • Em Cingapura, um breve teste cognitivo chamado Pensive-AI é capaz de detectar demência em menos de 5 minutos, sem necessidade de supervisão médica presencial. A ferramenta identifica comprometimento cognitivo leve (MCI) e demência precoce com 93% de precisão.
  • O estudoAI-assisted facial analysis in healthcare: from disease detection to comprehensive management” demonstrou que uma simples fotografia facial pode oferecer insights valiosos para auxiliar médicos na detecção precoce de diversas doenças. Com atributos não invasivos, de fácil aplicação e baixo custo, os sistemas de IA têm avançado na triagem de enfermidades como a síndrome de Marfan, doenças dermatológicas, distúrbios genéticos raros (alguns com manifestações faciais características) e condições neurológicas, como o Parkinson.
  • Cientistas da Universidade de Cambridge desenvolveram uma ferramenta de IA que pode acelerar as taxas de diagnóstico de doença celíaca. Testada em mais de 4.000 imagens obtidas em cinco hospitais distintos e com diferentes tipos de scanners, a IA é capaz de diagnosticar a doença imediatamente, enquanto um patologista leva de cinco a dez minutos para analisar cada biópsia.
  • Tornam-se cada vez mais comuns os exames de ‘whole body scan’ potencializados por IA. Embora controversos, são testes de ressonância magnética que, em uma hora, realizam uma varredura de corpo inteiro (cabeça, pescoço, tórax, abdômen, pélvis e pernas), identificando sinais preditivos de tumores sólidos (estágio 1), distúrbios autoimunes, distúrbios metabólicos (como fígado gorduroso e hemocromatose), aneurismas cerebrais e condições não cancerígenas, como cistos, hematomas, hemangiomas e abscessos.
  • “Biópsias líquidas” potencializadas por IA também se tornam cada vez mais comuns, permitindo detectar e monitorar doenças — especialmente o câncer — por meio da análise de fluidos corporais, como o sangue, em vez de extrair tecido diretamente de um tumor, como ocorre na biópsia tradicional. A biópsia líquida revela mutações EGFR e níveis flutuantes de ctDNA. A IA analisa o perfil genético completo, compara com um milhão de casos anteriores, identifica a mutação com maior chance de resposta e aponta o inibidor específico.
  • Outra plataforma de IA (N-Tidal Diagnose) está sendo implementada no Reino Unido para o diagnóstico de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Ela oferece aos pacientes uma alternativa à espirometria tradicional — técnica diagnóstica que remonta ao século XIX — interpretando automaticamente o padrão de eliminação de CO na respiração do paciente e fornecendo um diagnóstico preciso em até cinco minutos.

Estamos entrando na mais espetacular “Era de Detecção Preditiva e Preventiva” da história da medicina. Aos casos citados acima somam-se centenas, quiçá milhares de outros, já testados e com estudos publicados, expandindo de forma colossal o campo do diagnóstico clínico. Esses AI-detectors emergem por todas as áreas médicas, por vezes parecendo ‘brincar’ de espiões — ou olheiros — investigando germes, estatísticas sanitárias e o quadro climático, tentando prever onde e quando o próximo patógeno vai surgir.

Por outro lado, há sinais de que as IA-diagnósticas já estão sendo percebidas também como fonte de problemas — e não apenas de soluções. Pesquisas mostram que elas podem reduzir a espera para radioterapia, por exemplo, em mais de cinco dias para pacientes com câncer de mama, até nove dias para câncer de próstata, e três dias para câncer de pulmão. Em maio de 2024, o governo britânico anunciou um investimento de £ 15,5 milhões ao longo de três anos para financiar o delineamento automático por IA (“auto-contouring”), envolvendo todos os hospitais que oferecem radioterapia. Surpreendentemente (ou nem tão surpreendente assim), em fevereiro de 2025 o NHS England cortou milhões de libras desse financiamento.

O contorno tradicional usado na radioterapia é um processo lento e manual, podendo levar entre 20 e 150 minutos. O contorno automático por IA realiza a mesma tarefa em menos de cinco minutos. A justificativa do governo conservador britânico foi ‘priorizar ainda mais o investimento limitado’. Pode ser, mas uma análise realizada pela Radiotherapy UK estimou que a remoção desse financiamento deve adicionar até 500 mil dias extras às listas de espera apenas para câncer de mama, próstata e pulmão. Seria o corte de verbas um freio à expansão das listas de espera no atendimento oncológico do NHS? Pode ser especulação — mas também pode ser apenas uma simples conta aritmética: os sistemas de saúde, públicos e privados, não estão preparados para superdemandas vertiginosas de serviços. Nesse sentido, as IAs-diagnósticas podem escancarar ainda mais as portas de entrada das cadeias de saúde. Estariam os sistemas de saúde já drenando as IAs por precaução as filas de espera? Ninguém sabe, mas não seria estranho ou equivocado se o fizessem.

Por exemplo: um programa de diagnóstico precoce em uma cidade do país coleta saliva e fluido nasal do mesmo paciente que está em uma fila de vacinação. Marcadores salivares já permitem identificar: COVID-19, Influenza A e B, Vírus Sincicial Respiratório, rinovírus, adenovírus, Bordetella pertussis (coqueluche), HIV, doença periodontal, gengivite crônica, HPV, citomegalovírus (CMV), mononucleose (vírus Epstein-Barr), diabetes tipo 2 (via glicose salivar e outras moléculas), síndrome metabólica, doença cardiovascular (biomarcadores inflamatórios e enzimáticos), câncer bucal e de orofaringe (via alterações genéticas e proteicas), doenças neurológicas, câncer de pâncreas, pulmão, mama e colorretal, entre outras.

Os dispositivos de coleta com IA embarcada extraem moléculas-alvo (DNA/RNA, proteínas, metabólitos), que são transformadas em matrizes numéricas — como espectros, curvas de amplificação e perfis proteômicos. Esses dados são enviados imediatamente para a nuvem ou para um servidor local. A IA diagnóstica classifica o perfil como ‘normal’ ou ‘suspeito’, com base em padrões aprendidos a partir de milhares de amostras anteriores (data lake). Ela também pode reconhecer, por meio de redes neurais, padrões não-óbvios, combinando variações de múltiplos marcadores.

Na sequência, a IA avalia riscos cruzados (por exemplo: “nível elevado de proteína X + RNA viral Y = suspeita de infecção Z com 89% de certeza”) e gera laudos em linguagem natural, explicando ao paciente: “Foi detectado o vírus Influenza A, compatível com quadro clínico agudo. Recomenda-se confirmação e isolamento por cinco dias”. Todo o ciclo, da coleta ao laudo entregue no celular do paciente, levaria entre 10 e 30 minutos. Milhões seriam vacinados e diagnosticados na mesma jornada. E depois? O que aconteceria quando milhares de novos entrantes precisassem de assistência baseada nos laudos positivos? Essas perguntas estão na raiz do utilitarismo — funcional ou ético — das IAs diagnósticas.

Nessa direção, não devemos confundir “Techtopia” (futurismo de elevada automação e baixa efetividade) com “Tecnotopia” (progressismo técnico, determinante e factual). São neologismos, claro, mas nos ajudam a entender o conceito de legitimidade tecnológica. A primeira promete, mas não cumpre: é vitrine vistosa e ostensiva, mas de pouca substância. A Tecnotopia, ao contrário, representa o avanço técnico validado pela legitimidade. Techtopia nos encanta com algoritmos e promessas; Tecnotopia só reconhece valor nas evidências.

Os gregos já flertavam com essa confusão: ‘topia’ vem de tópos, lugar — como em utopia ou distopia —, mas seu uso original pretendia justamente explicitar a ideia de “lugar certo”, ou apropriado. A IA diagnóstica (IAd) precisa ser entendida pelo CEO como uma ‘inovação tecnotópica’ — ou seja, não é uma ação modernizante, mas uma estratégia alinhada às demandas represadas ou crescentes. Sem isso, IAd é só mais um bibelô na sala de estar.

Assim, o ‘perigo mora ao lado’: a expansão das IAs diagnósticas cria um paradoxo. Enquanto a eficiência delas pode esvaziar as salas de espera por diagnóstico, pode, simultaneamente, superlotar as salas de espera para procedimentos, consultas com especialistas e tratamentos. Cada diagnóstico adicional gera uma demanda subsequente de recursos terapêuticos ao sistema de saúde. Se a capacidade de tratamento (número de especialistas, leitos hospitalares, salas cirúrgicas, equipamentos etc.) não crescer na mesma proporção, o resultado inevitável será o aumento das filas de espera para cuidar de pacientes recém-diagnosticados por IAs — pura techtopia!

Portanto, a implementação em larga escala de diagnósticos assistidos por IA exige uma reflexão profunda e planejamento estratégico por parte dos gestores de saúde. As consequências são diretas: (1) Aumento das Filas de Tratamento: mesmo com diagnósticos mais rápidos e assertivos, pacientes terão que esperar mais tempo para iniciar tratamentos essenciais devido à sobrecarga; (2) Necessidade de Expansão Massiva de Recursos: os sistemas de saúde precisarão de ações crescentes e suplementares para aumentar drasticamente sua capacidade de tratamento e acompanhamento. Trata-se de uma questão hiperbólica: não basta “otimizar aqui e ali”, é preciso ampliar redes de atenção em escala maiúscula; (3) Reavaliação de Prioridades: será necessário redefinir critérios e políticas de “priorização de tratamentos” sempre que a demanda indicar superação da capacidade instalada (algo extremamente complexo e quase sempre injusto).

As Operadoras de Saúde precisam se preparar tecnologicamente para as IAs. Todavia, mais do que isso, precisam adaptar suas estruturas para lidar com as ‘consequências do sucesso da medicina preditiva propelida pelos LLMs’. Um volume muito maior de pacientes, corretamente diagnosticados, necessitará de acompanhamento para enfermidades embrionárias e reais (“quanto maior for a eficiência do sistema, maior será a sua usabilidade”). A falha em antecipar e planejar essa nova realidade pode levar as fontes pagadoras — públicas e privadas — a um colapso prosaico: mesmo com diagnósticos mais rápidos e precisos, filas de atendimento e tratamento aumentarão de forma extraordinária.

Na realidade, está claro que a única solução para reduzir a hipoassistência também virá da própria utilização das plataformas de IA. Seu nível de atuação em todos os vetores das cadeias de saúde — organização, operação, gestão, automatização, agentilização (uso de assistentes médicos), comunicação, integração, interoperabilização, entre outros — será a ponte para mitigar os eventuais estragos do hiperdiagnóstico. Para haver vencedores, não precisamos ter perdedores. Esse talvez seja o grande descompasso dos sistemas atuais de saúde: continuar a cuidar de um mundo que já não existe mais.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)

Curador FDHIC