Nunca nos ensinam sobre Saúde. Desde o maternal, só nos passam fragmentos dessa ‘coisa’ chamada doença. Parece pecado falar ou aprender sobre isso. Saúde e doença caminham conosco a vida toda, mas parece ser um ‘meteoro intergaláctico’ sobre o qual nada sabemos a não ser quando ele nos atinge na mais insólita ignorância. Professores nos ensinam sobre geografia, história, língua portuguesa, matemática, física, química, mas nada sobre como cuidar de nosso corpo. Somos abandonados à própria sorte de autocuidar-se sem receber a mais ínfima noção do que é saudabilidade, nutrição, caloria, aparelho reprodutor, vício, drogas, Internet e todas as demais armadilhas que nos espreitam pela frente. Alguns têm a sorte de ter na família um fluxo de ensinamentos, mas a grande maioria dos familiares não tem a menor ideia do que é ser sadio ou crônico.
Uma criança chegará aos 10 anos de idade sabendo menos sobre seu corpo do que sabe uma lagartixa, que por dever da natureza (instinto natural) já sabe tudo sobre sua essência corporal. Nós humanos, não, temos que aprender a nos cuidar, mas precisamos fazê-lo pelas redes sociais, ou pelas conversas em grupo, ou pelo Google. Na escola, não se pensa ou se fala sobre isso. Uma criança de 8 anos não recebe qualquer sequência de aulas formais e contínuas sobre suas ‘condições físicas de vivência’, e se recebe, está impresso numa apostila ou livro, ou são aulas de educação física voltadas ao esporte, sem um profissional preparado para explicar as regras da boa saúde.
Essa falência educacional vai mais longe: ninguém nos ensina nada sobre o que é privacidade, alegria, tristeza, esperança, virtude e valores morais. Podemos chegar aos 17 anos sem ter a mínima noção do que é ética. A filosofia e a sociologia passam longe das matrizes escolares. Podemos saber os principais afluentes à esquerda do Rio São Francisco, mas nada saberemos sobre morte ou sobre por que e para que vivemos. Porque choramos, porque precisamos de amigos, o que é compaixão ou tesão, nada disso passa pela educação formal, e se passa é num triscar de frases, com exemplos toscos. Somos abandonados na escola, à mercê das patologias mais difíceis ou transitórias.
Quando criança, visitamos médicos, mas eles só falam com nossos pais, ignoram nosso poder de influir nos ditames das moléstias de nosso corpo. Assim, somos iscas fáceis dos predadores bacterianos, virais ou qualquer outro patógeno que cruze nosso caminho. Poucos sabem o que é potabilidade da água, ou porque o sono é importante, ou porque a higiene conta, ou quais as causas de uma infeção, ou inflamação, ou mesmo de uma constipação.
Em nossa fase infanto-juvenil aprendemos pouco ou nada sobre saúde mental e emocional, quase zero sobre primeiros socorros e muito pouco sobre o uso de substâncias proibidas. A sexualidade continua um mito para a petizada, só aprendendo nos banheiros ou sites eróticos. Sobre sexo (doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo) e reprodução, desista, não espere que a família ensine: ou ela não sabe como ensinar, ou tem constrangimento, medo, ou simplesmente ela mesma sabe muito pouco sobre o assunto. Sobre ergonomia e postura corporal talvez a criança receba fundamentos na educação física, mas jamais receberá lições claras que envolvem alongamento, efeitos de carregar pesos em excesso, ou sedentarismo.
Na sua grande maioria, nenhuma escola pública ou privada gasta um joule ensinando qualquer coisa sobre finanças pessoais básicas, economia, poupança e responsabilidade financeira. Os adolescentes chegarão aos 15 anos repletos de Geometria, mas pouco sabendo sobre aparelho reprodutor, ou assédio, estupro, liberdade, libertinagem ou mesmo livre arbítrio. Somos ignorantes funcionais em saúde e se a cronicidade patológica nos persegue, somos “protegidos” contra a verdade, ou suas causas, ou mesmo sobre “que vida deverei ter” com essa ‘coceira’ incessante…
Humanos são condenados a saber quase nada sobre sua saúde, até que um dia ela se esvai. Até o fim de nossa adolescência não temos a menor noção do que é prevenção, risco ou autoproteção. Quando uma doença aparece e os sintomas nos sequestram, crianças perguntam a tudo e a todos (às vezes perguntam até ao Céu) o que elas têm ou como o ‘medicamento que ingerem age sobre elas’. Nada, pouca ou nenhuma informação. Parece perigoso sabermos sobre os trâmites da doença quando ainda somos pré-adultos.
O resultado é que crescemos nessa enorme ignorância, tornamo-nos adultos, pais e voltamos a fazer o mesmo racionamento informacional sobre saúde a que nos condenaram. Esse é o ciclo contínuo e imperativo da paternidade humana: “não se preocupe em saber sobre a saúde ou doenças, filho. Se preocupe só em estudar e aproveitar a vida”.
Essa disciplina tão importante e preterida pelos educadores chama-se “Alfabetização em Saúde”. Ela está ausente em praticamente todo o Ocidente, com ilhas de health literacy em apenas alguns países. Como todos os sistemas de saúde públicos e privados são hoje insuficientes para enfrentar as curvas demográficas globais, todos agora correm atrás de implantar rapidamente seus “estatutos” e features sobre aprendizado em Saúde. No Brasil, há poucos sinais de que no médio prazo isso será implementado. Embora a nova grade curricular seja um pouco mais arejada em relação à saúde, ainda é anedótica para aquilo que o país precisa.
Há 20 anos, o mês de outubro foi reconhecido internacionalmente como o “Mês da Alfabetização em Saúde”. Apesar da ausência de dados sobre health literacy, está claro que estamos diante de um desafio global: na Europa, 47% da população tem alfabetização sanitária limitada, enquanto na China apenas 30% dos habitantes têm alfabetização básica em saúde. Populações com baixa alfabetização em saúde têm conhecimento limitado sobre onde e quando procurar serviços de saúde adequados, sendo menos propensas a procurar cuidados preventivos. Além disso, administram mal sua saúde e frequentemente enfrentam maiores taxas de mortalidade. Isso tudo deságua na Economia da Saúde, que assiste impávida o analfabetismo em saúde arrestar quase 20% dos gastos sistêmicos com o setor.
No Reino Unido, por exemplo, 43% dos adultos não entendem informações escritas sobre saúde. O impacto socioeconômico no país é extenso: entre 4 e 6 bilhões de dólares ao ano, sendo as readmissões hospitalares o principal impulsionador desses custos. Esses dados levaram o país a estudar por 20 anos o tema, implementando a partir de 2020 o programa PSHE (Personal, Social, Health and Economic Education). Ele é ‘quase obrigatório’ (mas aderente por 90% das escolas) e já vem mostrando métricas importantes: estudantes com ensino de PSHE têm 20% melhores notas em comparação com aqueles que não tiveram acesso ao programa, especialmente em áreas mais carentes. A redução de bullying entre alunos das escolas que implementaram o PSHE também foi reduzida em 15%, promovendo um ambiente escolar mais seguro e propício ao aprendizado. Da mesma forma, alunos dessas escolas relataram uma melhora de 25% no bem-estar emocional, especialmente no que diz respeito à autoconfiança e às habilidades sociais. É claro que todos esperam resultados maiúsculos com mais tempo de duração (quiçá em 2030 o NHS possa comemorar uma importante melhoria em seus índices clínico-assistenciais). Programas como esse demoram décadas, às vezes uma geração, para produzir resultados expressivos. Países que não têm o costume de planos de longo prazo, como o Brasil, ‘tropeçam em suas múltiplas pernas sem saber com que pernas devem seguir’…
Também no Reino Unido, especificamente na Escócia, desde 2008 foram introduzidas iniciativas como o programa “Making it Easy”, que promove a Educação em Saúde desde o ensino fundamental, desenvolvendo habilidades críticas nas crianças para compreender e gerenciar informações de saúde. Os resultados já alcançados são evidentes: “aumento de 75% na capacidade dos estudantes de compreender informações de saúde, além de uma redução de 15% nas hospitalizações evitáveis nas áreas onde o programa foi implementado. Além disso, contribuiu para uma diminuição de 10% nas desigualdades em saúde, particularmente em comunidades vulneráveis”, explica o documento “Sláintecare Healthy Communities Health Literacy Report”, publicado este ano pela School of Health and Human Performance, Dublin City University.
O relatório objetiva expandir a alfabetização em saúde na Irlanda, investigando suas implicações tanto no nível individual quanto sistêmico. O conceito de alfabetização em saúde é basilar: “prover fundamentos para capacitar as pessoas a acessar, compreender, avaliar e aplicar informações relacionadas à saúde para tomar decisões informadas e promover o bem-estar”. O relatório examina as dificuldades enfrentadas por uma parcela significativa da população irlandesa em relação à health literacy, o que resulta em piores desfechos de saúde e aumento nos custos dos serviços médicos. Na Irlanda, a implementação da alfabetização em saúde tem sido irregular e fragmentada, onde só extratos populacionais de alta renda têm alguma iniciativa nessa alfabetização. O relatório mostra ainda que na Irlanda muitos já recorrem à inteligência artificial para obter conselhos sobre saúde. Um participante do estudo expôs uma típica consulta às IAs: “Eu digo: Faça um menu saudável para uma semana para seis pessoas. Um dos meus meninos não come isso, outro não pode comer aquilo… Esse é dinheiro que tenho”. Na sequência, a IA cria um menu semanal com todos os elementos proteicos necessários. É de se supor que, em alguns poucos anos, cada indivíduo terá um Assistente Virtual Clínico (IA) que o acompanhará desde os primeiros anos de vida. A isso daremos o nome de “self-literacy in health”, ou seja, o autodidatismo. Será o único elemento de capacitação em saúde se o Estado e os canais institucionais nada fizerem. Na Irlanda, por exemplo, “cerca de 40% dos adultos possuem baixos níveis de alfabetização em saúde, impactando negativamente a capacidade de autogestão, aumentando a dependência dos serviços de emergência”.
O documento Sláintecare também compara outros programas de redução da ignorância sanitária, como da Austrália, onde a ‘alfabetização em saúde já foi incorporada ao currículo escolar, promovendo noções básicas de saúde desde o primeiro ano de ensino’. A iniciativa já mostra resultados positivos ao fornecer às crianças as habilidades necessárias para entender e aplicar informações de saúde. O “National Strategic Framework for Chronic Condition”, da Austrália, revela que a média de redução de custos com saúde foi 10-15% devido aos programas de alfabetização em saúde.
Nos EUA, o programa “Healthy People 2030” (iniciado em 2020) aferiu uma redução de 20% nas hospitalizações evitáveis e um aumento de 15% na adesão a cuidados preventivos após a implementação de estratégias de alfabetização em saúde. Além disso, houve uma melhoria na taxa de cessação do tabagismo, associada aos vetores de alfabetização e compreensão dos riscos do fumo. O Healthy People 2030 conseguiu reduzir a taxa de adultos fumantes de 14,2% em 2019 para 11,0% em 2023 (a meta é alcançar 6,1%). Até 2022, 47,8% dos adolescentes entre 12 e 17 anos com episódios depressivos grandes (MDEs) receberam tratamento, superando a meta de 44,9%. No caso do nível médio de colesterol total em adultos, a redução foi de 190,9 mg/dL (2013-2016) para 187,2 mg/dL (2017-2020), sendo a meta alcançar 186,4 mg/dL. Não houve mágica, houve educação básica em saúde. Os dados do “Healthy People 2030″ mostram que a implementação de iniciativas de alfabetização reduz as hospitalizações evitáveis, aumentando a adesão aos cuidados preventivos. Estima-se que a alfabetização limitada em saúde, por meio de todos os seus impactos (erros médicos, falhas de comunicação, aumento de doenças e incapacidades, perda de salários e comprometimento da saúde pública) custe à economia dos EUA até US$ 349 bilhões por ano, quando ajustada pela inflação para dólares de 2023 (fonte: Center for Health Care Strategies).
Quando um analfabeto em saúde fica mais velho, sua insegurança cresce na mesma proporção. Outra pesquisa (“Health Literacy: How Well Can Older Adults Find, Understand, and Use Health Information”) publicada este ano pela University of Michigan, mostra as dificuldades dos ‘idosos analfabetos em saúde’: no geral, 80% das pessoas com 50+ disseram ter pouca ou nenhuma confiança de identificar a desinformação médica quando as veem. Essas pessoas, em geral, não se cuidam, não sabem se cuidar ou estão excluídas do processo de tomada de decisão clínica de suas vidas. São zumbis ao sabor de sites na internet, de amigos ou parentes que opinam. São também denominados carinhosamente como “sinistros” pelas Operadoras de Saúde.
Uma tartaruga recém-nascida sai da casca na praia, caminha alguns passos, chega ao mar e o resto é por sua conta. Está pronta. Um ser humano, três anos após nascer ainda é totalmente dependente dos outros. Se não lhe ensinarem nada, não sobrevive até os quatro anos. Mas vai chegar aos 14 sabendo pouco ou nada sobre sua saúde, ou como sobreviver sem os outros. A Organização Mundial da Saúde enfatiza que a alfabetização em saúde é mais do que a capacidade de entender e “cumprir” os ditames dos profissionais de saúde. Ela abrange “a motivação e a capacidade dos indivíduos de obter acesso, entender e usar informações de maneira que promovam e mantenham sua própria boa saúde”. Nesse sentido, vale a citação do National Patient Safety Foundation (encampada pela Associação Médica Americana): “Nada, nem idade, renda, status de emprego, nível educacional e grupo racial ou étnico, afeta mais o estado de saúde do que as habilidades de alfabetização em saúde do paciente”. Os filhotes de tartarugas já sabiam disso antes de nascer.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)