O autor peruano Heber Snc Nur escreveu em sua obra “El Rostro del Invierno”: “Talvez não me falte nada ou ninguém, talvez eu seja incompleto por natureza”. A licença poética de Nur é fascinante, mas a maioria dos mortais não pensa assim, e busca incessantemente alguém ou algo que possa dar mais sentido à sua vida. Nossa curiosidade sobre as coisas que nos faltam só perde para a curiosidade de como será nosso futuro, com ou sem essas coisas. O interesse pelo nosso futuro individual e pelas etapas que nos esperam, aguça nossa tocaia em busca de cartomantes digitais.
Como seria o diálogo de você com seu ‘Eu+30’? Como seria conhecer qual teria sido seu futuro 30 anos antes dele acontecer? Que experiências “Você+30” poderia lhe contar? Quantos netos te cercam, quantas viagens sonhadas você finalmente fez, quais projetos profissionais lograram êxito ou fracassaram? Fantasia dialogar com um você anos à frente? Não, chama-se Future You, uma IA (LLM) modelada em formato de chatbot, desenvolvida por pesquisadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Ela é capaz de simular uma conversa com o ‘eu mais velho’ do usuário. Sua foto, envelhecida digitalmente, pode mostrar suas rugas e cabelos brancos. O Future You gera memórias sintéticas plausíveis e se baseia nas aspirações atuais do usuário para contar histórias sobre sua vida bem-sucedida (ou malsucedida). Você entra na plataforma (free), responde a perguntas feitas pela ferramenta e aguarda a conversa com seu eu-longevo.
Parece uma lorota, mas não é. A jornalista Heidi Mitchell explicou ao The Wall Street Journal sua experiência com o Future You: “Acontece que vou escrever um livro! Vai exigir anos de agonia, mas eu vou fazer isso. Além disso, vou me aposentar aos 65 anos. Quem teria pensado que essa workaholic poderia pendurar seu caderno tão cedo? E terei seis netos. Infelizmente, vou morar nos subúrbios; nenhum loft no centro de uma cidade europeia para mim. Pelo menos vou aproveitar aquela viagem em família para a Tailândia, que faremos com os netos. Ah, e minha ‘paixão por criar mudanças positivas’ nunca desaparecerá. Aprendi tudo isso conversando comigo mesmo aos 80 anos, ou seja, daqui a cerca de 30 anos”.
Para que essa interação ocorra em um chatbot, o usuário é solicitado a responder uma série de perguntas sobre si mesmo, seus amigos, familiares, sobre suas experiências vividas, os fatos que moldaram sua vida e como ele se imagina no futuro. Ele insere sua imagem (foto), que a plataforma envelhece digitalmente para mostrar ao usuário como poderá ser sua aparência daqui a 30 anos. Com as respostas, a plataforma Future You alimenta um grande modelo de linguagem (LLM) que gera ricas memórias sintéticas para o “eu mais velho” (simulado). A plataforma opera dentro do modelo ChatGPT, da OpenAI (quer dizer, não é uma daquelas IAs paridas na garagem de nerds). Assim, quando o chatbot responde às perguntas, ele se baseia em uma história de fundo coerente. Acompanhe o vídeo explicativo.
O Future You se autodenomina “uma experiência interativa para cultivar a autorreflexão e o pensamento de longo prazo”. O modelo baseia-se no estudo “A Conversation with an AI-Generated Future Self Reduces Anxiety, Negative Emotions, and Increases Future Self-Continuity”, publicado em outubro/2024 por pesquisadores do MIT, da Harvard University e da University of California (UCLA). Ou seja, só gente graúda, que não costuma perder tempo com experiências fantasiosas.
A conclusão do estudo chega a ser lírica, se não fosse séria: “O Future You demonstra uma intervenção em tempo real, baseada na web, que se mostra promissora para ajudar os usuários a construírem um relacionamento mais próximo com seu eu futuro ideal — em uma única e breve sessão conversacional. Ao dialogar com uma versão virtual e relacionável de seus ‘eus futuros’, incluindo umretrato de progressão de idade, os usuários experimentaram emoções negativas reduzidas, como ansiedade e sentimentos desmotivados, e aumentam significativamente a experiência de uma continuidade futura do próprio eu. Essas descobertas destacam o potencial de um ‘eu futuro’ gerado por IA possaajudar a motivar e apoiar a visualização do futuro de alguém. Esperamos que nosso trabalho inspire mais pesquisas em interação humano-computador que se concentrem em promover a continuidade futura do eu e a tomada de decisões e bem-estar mais saudáveis e de longo prazo”.
Trata-se, portanto, do primeiro estudo que demonstra com sucesso o uso de personagens personalizados, gerados por IA, para melhorar a continuidade e o bem-estar futuros dos usuários, explicam os autores do estudo. A plataforma interativa foi desenvolvida com apoio de psicólogos, pesquisadores e tecnólogos, estabelecendo uma conexão do usuário com “seu eu virtual mais velho”. Em outras palavras, uma oportunidade de olhar para trás em sua vida antes de realmente vivê-la. Future You tem o cuidado de informar aos usuários de que o “eu futuro” não é uma previsão, mas sim um “eu futuro potencial”, baseado nas informações que eles mesmos forneceram. Dessa forma, o usuário pode explorar futuros diferentes alterando suas respostas ao questionário.
“Saber o que o futuro te reserva”. Com o AI Future You, as pessoas podem se ver conversando com sua versão envelhecida, uma espécie de ‘alter-ego-digital’, fazendo perguntas e recebendo respostas algoritmizadas por meio de memórias hipotéticas, baseadas em seus próprios sonhos e aspirações. Os dados pessoais inseridos na plataforma são anonimizados e as respostas da pesquisa com seu eu futuro são armazenadas para aprofundar e melhorar a plataforma. Perto de 60 mil pessoas em todo o mundo já acessaram o site, embora a experiência só possa ser realizada em língua inglesa.
Assim, quando você fala com essa persona, descobre que ela tem uma memória sintética dos últimos 30 anos. Dessa forma, ela pode falar com você sobre o que a levou a se tornar essa versão (projetada e fictícia) de você mesmo. Isso pode significar descobrir quais metas profissionais você poderia ter alcançado ou entender por que não as alcançou. A IA não dirá apenas quais metas foram alcançadas, mas mostrará uma linha do tempo (inteira) explicando como você chegou a esse ponto. O resultado, segundo os pesquisadores que a desenvolveram, está longe de ser genérico, pois a IA deve ser capaz de atuar como uma versão potencial e convincente do ‘seu eu futuro’.
A ideia de interagir com um doppelganger do futuro (um sósia ou duplicata) parece, em princípio, nada mais do que um jogo de “e se”, sem nenhum valor real além do entretenimento. No entanto, aqueles que experimentaram o Future You relataram “sentir que têm uma nova visão de suas vidas e mais motivação para perseguir os objetivos atuais”. Na verdade, mesmo em uma curta interação com ‘seu eu futuro’, não são poucos os usuários que dizem sentir menos ansiedade sobre o futuro como um todo. Os pesquisadores do MIT acreditam que, embora a simulação de IA claramente não preveja o futuro real de ninguém, ela pode fazer o futuro parecer mais real, encurtando a distância psicológica que podemos sentir em relação a esse Eu+30, encorajando uma melhor tomada de decisão: uma coisa é decidir, a outra é decidir considerando que você pode visualizar algum impacto de suas escolhas.
Tentar “viajar” no futuro não é novo. O ‘Oráculo de Delfos’ (750 a.C.), um dos mais importantes centros místicos da Grécia Antiga, era onde os gregos acreditavam que a vontade e as mensagens do deus Apolo eram transmitidas aos mortais. Localizado no Monte Parnaso, o oráculo desempenhou um papel central na cultura, política e espiritualidade gregas por séculos. O diálogo com Apolo era feito por meio de uma sacerdotisa chamada Pítia, escolhida entre as mulheres da região (devendo ter vida exemplar e geralmente de meia-idade). Durante os rituais, Pítia entrava em transe (supostamente induzida por vapores naturais que emanavam de uma fissura no solo do templo) e proferia respostas enigmáticas às perguntas feitas pelos consulentes. Eram respostas ambíguas, permitindo várias interpretações, o que refletia a crença grega na incerteza do futuro. As ruínas arqueológicas do sítio de Delfos ainda podem ser visitadas na Grécia, sendo hoje protegidas pela UNESCO. Mas, mesmo sendo um local turístico, não são poucos os que ainda hoje por lá passam tentando obter fluidos futurísticos.
Na Modernidade, as tentativas de compreender e antecipar o futuro não eram mais vistas como um mistério insondável, mas como algo que poderia ser previsto ou moldado por meio da razão e do método. Descartes (1596-1650), pai da filosofia moderna, estabeleceu que a dúvida metódica e a certeza racional poderiam levar os humanos a preverem e controlarem os fenômenos naturais e sociais. Embora sua “previsibilidade cartesiana-racional” tenha ajudado imensamente no desenvolvimento da Ciência, era insuficiente para prognosticar o futuro prescritivo da civilização, ou de qualquer cidadão em particular. O reducionismo cartesiano propeliu a Matemática, por exemplo, mas Descartes não conseguiu prever os limites da própria razão. Esse reducionismo revelou que o mundo era muito mais complexo e incerto do que qualquer modelo racional poderia na época captar. Descartes impulsionou as ferramentas de previsão, mas tropeçou na previsibilidade utilitarista.
Na Pós-Modernidade, a necessidade de prever o futuro entra em choque: ao mesmo tempo em que a humanidade desenvolveu modelos preditivos cada vez mais sofisticados — da estatística bayesiana à inteligência artificial — ela também desconstruiu a própria noção de um futuro linear e determinístico. Pensadores como Jean-François Lyotard (1924-1998) e Jean Baudrillard (1929-2007) desafiaram a ideia de que o conhecimento poderia oferecer certezas sobre o porvir. Argumentavam que a realidade se tornou uma teia de signos, simulações e narrativas em disputa. O futuro deixou de ser um destino a ser calculado e passou a ser um campo de possibilidades fragmentadas, no qual a “incerteza não é um erro a ser corrigido, mas uma condição inevitável da existência”. Assim, se na Antiguidade buscava-se o oráculo, e na Modernidade confiava-se na razão, na Pós-Modernidade o futuro tornou-se um território líquido, onde a ciência e a tecnologia tentam identificar padrões, cabendo a subjetividade humana desmontar qualquer modelo probabilístico.
Ainda assim, no século XXI, estamos cada vez mais perto de Delfos e de sua relação com o futuro dos mortais, avançando numa espécie de “Delfos Artificial” com um oráculo-LLM embrionário. A melhor proposta antes de consultar o Future You é lembrar de Epicteto (55–135 d.C.), filósofo estoico romano que, em sua obra Enchiridion, ensinava a chave para a tranquilidade na vida: “distinguir entre o que está sob nosso controle e o que não está”. Ele afirmava que algumas coisas dependem de nós (como opiniões, desejos, atitudes, etc.), enquanto outras fogem ao nosso domínio (como o corpo, riqueza, status, circunstâncias externas, etc.). Embora ele não as quantificasse matematicamente, sua filosofia sugere uma divisão simbólica: “50% do que acontece em nossa vida está sob nosso controle, e os outros 50% são ditados pelo acaso em nossos encontros com o mundo”. Como bom estoico, Epicteto propunha que deveríamos focar no que podemos controlar, aceitando com serenidade aquilo que não podemos mudar.
Mas se temos poder sobre “metade” do que ocorre, e podemos nos preparar, planejar e projetar ações para o futuro, então o Future You poderia oferecer pistas valiosas sobre o que nos espera. Se for usado como orientação e não como determinismo, pode ser uma ferramenta útil para planejamento e reflexão. Desde que, é claro, saibamos o que queremos, aonde queremos chegar e por que estamos nos preparando para isso.
Peggy Y. Yin, de Harvard, que ajudou a projetar a IA Future You, explica a proposta: “Future You é uma ferramenta que permite as pessoas explorarem diferentes possibilidades de seu futuro, para encontrar uma que pareça mais autêntica e inspiradora para elas. É uma intervenção muito fundamentada, e mostramos aos usuários diferentes possibilidades de seu futuro, ao mesmo tempo em que enfatizamos que este é mais um espaço de possibilidades e não um espaço de profecia. Queremos fazer as pessoas pensarem sobre as consequências de suas ações e serem mais conscientes das escolhas que estão fazendo hoje”. Para Hal Herschfield, pesquisador da Universidade da Califórnia (que participou da elaboração da plataforma), a mente psicológica por detrás do Future You, utilizou um conceito chamado “continuidade futura do eu”, que descreve o quão conectados os ‘indivíduos sentem que seu eu presente está ligado a seu eu futuro’. Segundo ele, indivíduos com alta ‘continuidade futura do eu’ provavelmente prestam mais atenção às suas escolhas, pois entendem que elas impactam o seu amanhã.
Como sólida formação espiritual, o escritor norte-americano Francis Maier, autor de “True Confessions: Voices of Faith from a Life in the Church”, foi lá testar o Future You. Sua experiência foi menos excitante, como descreve: “Infelizmente o Francis de 80 anos é tediosamente familiar. Ele não é um parceiro de bate-papo fascinante. E isso não é uma surpresa. Já estou na casa dos 70; e aos 80 (assumindo que ainda esteja por aí) provavelmente serei mais do mesmo ‘velho eu’. Future You parece voltado para aqueles com uma rampa de decolagem mais longa; pessoas na faixa etária de 30 a 50 anos. Então, não vou me juntar a Elon Musk em Marte ou escrever a sequência de ‘Os Demônios’, de Dostoiévski. Sonhos frustrados são amargos”.
É certo que a interação homem-máquina continuará crescendo.Todavia, é sempre preciso lembrar que a Inteligência Artificial nãopode ser comparada à Inteligência Natural (humana ou mesmo animal).Um cão não sabe o que é o Sol ou a sombra. Não tem a mais mínima ideia. Mas seu metabolismo precisa equilibrar a temperatura do corpo ao longo do dia para evitar alterações desconfortáveis. Por aprendizado contínuo e natural, ele percebe que um determinado local (protegido do sol) pode lhe gerar mais conforto e sensações melhores. Assim, no verão, passa o dia buscando sombra, embora não tenha a menor ideia do porquê.
O parágrafo de um livro, por exemplo, tem um sentido, mas ele próprio não sabe que o tem. Se soubesse, poderia até continuar o livro sozinho. IA não tem “um si mesmo”. IA não faz confidências, não fala sobre si mesmo, ou sobre sua vida pretérita, ou sobre seus encantamentos e crises. Por isso, ela é inimputável, como um cão, uma criança recém-nascida ou um indivíduo com debilidade mental. Não espere da IA Future You ou de qualquer plataforma semelhante (acredite, haverá muitas), que ela faça as escolhas pelo usuário, ou que indique um sentido para as escolhas dele. Não funciona assim. “Fazer uma coisa com sentido é diferente de compreender o sentido das coisas”. IA não sabe nada sobre si, mas talvez nos ajude a saber melhor sobre nós.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)