Trump provou que a ignorância é atrevida. Provou mais: é possível ser cada vez mais adolescente quanto mais idade se tem. Seu vocabulário de 70 palavras governa o país mais rico do mundo. Obviamente, essa realidade não é nova. Há séculos, em outras regiões do mundo, muitos utilizaram o fenômeno político-cultural da ignorância performativa. Em Atenas (450 e 380 a.C.), o florescimento dos tribunais abertos fez emergir os sofistas (sofistés), “peritos práticos” que viajavam de cidade em cidade tentando convencer o povo por meio da retórica. Eram profissionais (cobravam para discursar) que estimulavam o populismo, vendendo qualquer ideia de quem lhe pagasse mais. Alguns (poucos) eram realmente bons e lúcidos (Protágoras, Górgias, Hípias), mas a maioria era oportunistas que exploravam a boa-fé da audiência nas Assembleias, para ódio e repulsa de Platão, Sócrates, Xenofonte, Aristóteles e outros filósofos, cuja busca pela verdade era a única coisa que importava. Trump é um ‘sofista de massa’, que se move num ecossistema midiático onde a verdade factual vale menos do que a verdade performativa (truthiness).

Na Saúde, o presidente dos EUA mostra sua galopante insipiência: “Imediatamente após a posse do Secretário da Saúde, assinarei uma ordem executiva para tornar a América saudável de novo” (fonte: White House). Seu secretário da Saúde, Robert F. Kennedy Jr., vai mais longe: “Até setembro vamos saber o que causou a epidemia de autismo e poderemos eliminar essas exposições”, prometendo em 5 meses resolver uma questão multicausal que desafia a ciência há décadas. Um humanoide de segunda geração (estamos na quarta) faria melhor do que Trump e “Bobby”.  

Seu adversário direto, a China, fala menos e se move mais rápido, principalmente em uma das indústrias de serviços que os EUA mais enfrentam problemas: cuidados clínicos-assistenciais. Um exemplo foi apresentado em abril de 2025: a empresa chinesa Ant Group, subsidiária da poderosa Alibaba Group Holding (540 mil funcionários e lucro líquido em 2024 de US$ 11 bilhões) disponibilizou a seus pacientes “100 Agentes de Inteligência Artificial” que representam os principais especialistas em áreas como câncer e doenças crônicas. Os usuários passam a ter acesso a médicos renomados dos principais hospitais do país, que habilitaram pessoalmente todos os AI Medical Agents, treinando cada um deles. Os “agentes de IA autenticados por médicos” (doctors’ authenticated AI agents) têm como objetivo auxiliar os pacientes a obterem aconselhamento e orientação médica (“com autoridade e confiabilidade”), ajudando-os a buscar apoio profissional “rápido”. Trata-se, enfim, de acesso médico-escalar direto na veia do sistema chinês de saúde.

Em janeiro, a Ant concluiu a aquisição da Haodf (plataforma de consulta médica online), permitindo lançar um assistente médico de IA para auxiliar os 290 mil médicos da Haodf em tarefas como gerenciamento de prontuários médicos. Isso pavimentou a entrega dos “100 Agentes de Inteligência Artificial”, que possibilita aos pacientes se comunicar com “avatares sintéticos de seus médicos favoritos” por texto ou áudio, em regime de 24 x 7. Uma vez diagnosticado, a IA também ajuda os pacientes a agendarem consultas presenciais com os médicos humanos (a Ant utiliza como modelo-base o DeepSeek). Ao mesmo tempo, a Ant disponibilizou seu aplicativo de pagamento (Alipay) para toda a rede sistêmica de saúde (que envolve transações remuneratórias a médicos, fornecedores, etc.), monetizando a relação entre as partes. O Aliplay conecta mais de 1 bilhão de consumidores a mais de 80 milhões de empresas de serviços em toda a China.

Há muitas aspas nos parágrafos acima porque as fontes de informação, embora oficiais, são sempre controversas no país. Não é a primeira vez que os exageros sufocam as notícias tecnológicas da China. A bem da verdade, a Ant não é uma startup e conta certamente com forte apoio do Governo nessa ação agêntica. Seu background tecnológico em IA é espantoso: 60,8% de seus funcionários trabalham em funções de tecnologia, possui mais de 22 mil patentes e opera os AI Agents em ambiente blockchain.

Para entender a implementação chinesa dos “100 Agentes de Inteligência Artificial”, é preciso entender o salto chinês para o MMIS (Multilevel Medical Insurance System), que nada mais é do que a grande engrenagem econômica que sustenta a cobertura de saúde para mais de 1,4 bilhão de habitantes. O sistema foi desenhado para reduzir gastos e garantir acesso progressivo a terapias cada vez mais complexas, articulando diferentes fontes de financiamento (público e privado) em uma arquitetura de camadas. Uma camada principal, o Seguro Básico de Saúde (BMI), é algo como um “sistema universal” que em 2024 atingiu uma cobertura superior a 95% da população. O BMI subdivide-se em duas categorias principais: o UEBMI (Urban Employee Basic Medical Insurance), financiado por contribuições obrigatórias sobre a folha de pagamento (empregado + empregador), além dos juros de fundos acumulados; e oURRBMI (Urban-Rural Resident Basic Medical Insurance), que é sustentado por subsídios fiscais governamentais (central e provincial), acrescido de pequenas contribuições anuais dos beneficiários. O URRBMI cobre, em média, entre 60% e 80% dos custos médicos totais, com tetos de reembolso variando de acordo com cada província.

Além dessa cobertura básica, existem mais três níveis complementares: (1) Seguro de Doenças Graves (Catastrophic Medical Insurance), que cobre despesas médicas extraordinárias que ultrapassam o teto do Seguro Básico, onde incide uma coparticipação regressiva (entre 50% e 10% conforme os gastos aumentam); (2) Assistência Médica (Medical Aid), que oferece subsídios adicionais ou até mesmo a isenção completa do copagamento para famílias de baixa renda; (3) Seguro de Longa Duração (Long-term Care Insurance), ainda experimental (projeto-piloto em cerca de 50 cidades), mas destinado aos idosos com dependência funcional (a expectativa de vida chinesa é de 79 anos).

Fora do sistema público ou misto, operam os seguros privados, como os Planos Empresariais/Sindicais, que ampliam as listas de medicamentos e suportam tetos de reembolso; e os Planos Populares ‘Huimin Bao’, que oferecem copagamentos para medicamentos de alto custo e tratamentos oncológicos. Além disso, existem também as Apólices Comerciais Individuais, com prêmios definidos por idade e perfil de risco; e, por fim, as Sociedades Digitais de Ajuda Mútua, uma modalidade de ‘crowdfunding médico’ que sofreu forte regulamentação a partir de 2021 (muitas dessas plataformas digitais, como a famosa Xiang Hu Bao, faliram ou foram reduzidas).

A estrutura do MMIS é, portanto, híbrida, articulando: (a) uma cobertura básica universal financiada por contribuições sociais e subsídios fiscais, (b) copagamentos diretos do usuário e (c) complementos privados que reforçam a proteção financeira. A regulação geral é feita pela NHSA (Administração Nacional de Segurança de Saúde), que desde 2018 padroniza preços de medicamentos, DRGs (Grupos Diagnósticos Relacionados) e DIPs (Pacotes DiagnósticoIntervenção), embora a execução financeira permaneça majoritariamente provincial (resultando em desigualdades regionais significativas). Não há informações claras, mas é bastante provável que, como ocorre na maioria dos países, a China também enfrente déficits em suas contas de Saúde. Lavoisier endossaria.

Pode parecer que o sistema chinês está protegido, sendo performático e equitativo, mas ainda está longe disso. Permanece profundamente desigual como no Brasil, um paciente pode precisar viajar centenas de quilômetros para realizar um exame mais complexo ou conseguir atendimento especializado sofrendo também de um fenômeno comum no Ocidente, o “empobrecimento médico”, em que famílias se endividam ou entram em situação de pobreza para pagar tratamentos. Da mesma forma, convive com a superlotação nos grandes hospitais urbanos, sem falar na síndrome dos países com dupla assistência (público e privada): uma colossal fragmentação sistêmica. Todavia, há uma diferença entre a China e outros países, como o Brasil: “a dinâmica de promover reformas constantemente, sem medo de prototipar ideias ou avançar na transformação digital” (em meia década o país ergueu mais de 3.000 hospitais virtuais, levou cerca de 363 milhões de pessoas a consultar médicos on-line e estabeleceu um mercado de saúde digital que, em 2024, superou US$ 58 bi – fonte: JMR).

Por outro lado, a China mantém ainda seu sistema ancestral e secular de cuidados em saúde. A partir do século XIX, passou a conviver — e depois a se fundir — com a biomedicina ocidental. O resultado hoje é um sistema híbrido, onde hospitais de “medicina integrada” (zhongxi yi jiehe), com equipamentos de imagiologia altamente sofisticados, dividem espaço com acupuntura, fitoterapia e sua farmacopeia tradicional (o primeiro hospital de estilo ocidental, com anatomia, anestesia e oftalmologia, surgiu no sul da China em 1835). Em termos práticos, em todo o território chinês ainda se utiliza alguma forma de medicina tradicional, mas quase sempre em regime de complementaridade e não mais de exclusividade (um hospital terciário em Pequim, por exemplo, prescreve Qingfei PaiduTang para COVID19, porém confirma a pneumonia com TC helicoidal; do mesmo modo, uma clínica rural em Gansu usa penicilina genérica ao lado de emplastros de cânfora). Grosso modo, a “migração” chinesa para o modelo ocidental nunca foi uma substituição, mas a chamada “osmose pragmática”: a biomedicina fornece microscópios, antibióticos e cirurgias, com a tradição fornecendo um arcabouço terapêutico popular, como plantas endêmicas.

FENÔMENO RELEVANTE: o principal fenômeno assistencial neste início de século não ocorre somente na China, mas em quase todo o mundo. Trata-se da aproximação cada vez mais rápida entre as Ciências Biomédicas e as Ciências Exatas. Uma quase fusão, uma afinidade epistemológica inevitável que já começa a gerar transformações na Academia Médica. Mais do que reduzir a biomedicina à lógica dos algoritmos, essa convergência permite que a medicina se torne mais precisa, mais preditiva e mais personalizada, sem abandonar sua vocação ética e relacional. Como explicou o biólogo francês François Jacob (1920-2013): “Não é apenas prudente, mas epistemologicamente inevitável que as Ciências Biomédicas se aproximem das Ciências Exatas; pois a complexidade da vida já não se rende aos limites do empírico, exigindo cada vez mais a precisão radical dos números”.

No passado (séculos V‑IV a.C.), a palavra epistéme abrigava todo o edifício do saber. Não existia uma “área” de Exatas, Humanas ou Biomédicas. Havia phýsis, ou seja, uma ordem inteligível da natureza, que mais tarde veio a se chamar “Ciências da Vida”. Na Grécia clássica, Platão reuniu aritmética, harmonia e medicina para a formação dos filósofos; e Aristóteles, contemporâneo de Platão, distinguia apenas as forças motrizes do intelecto (teórica, prática, poética). A longa Idade Média incorporou o legado grego, mas também o Trivium e Quadrivium (as “sete artes liberais”: Gramática, Retórica, Dialética, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), que acabou separando o conhecimento em áreas: a Medicina migrou para as artes liberais, a Matemática ocupou as chamadas cátedras próprias e a Teologia coroou esse enorme edifício. No século XIX, surge a Revolução Laboratorial, com Pasteur, Koch e outros, que inseriram a biologia dentro do microscópio. Maxwell, Gibbs e outros passaram a tratar a Física e a Matemática com uma linguagem própria e dinâmica. Sem falar na “Institucionalização”, que fez emergir as faculdades especializadas. Sim, havia também o início da mercantilização das práticas de cura (um trato que ocorreu com todos os ativos viventes ou abióticos no universo civilizatório).

O resultado foi um saber em “ilhotas”: cirurgiões sem álgebra avançada, físicos longe da fenomenologia corporal e matemáticos regidos unicamente pela acurácia numérica. Hoje, em vez de “reduzir a biomedicina à lógica algorítmica”, a fusão das ciências — tão bem demonstrada com as Inteligências Artificiais — pavimenta as descobertas científicas e as práticas médicas, restituindo a ambição helênica: compreender e governar o corpo humano sob a mesma luz que decifra estrelas e mercados — agora com petabytes de dados e nanômetros de silício. Como na Ágora pré‑alexandrina, voltamos a falar uma língua sem adjetivos disciplinares: números descrevem proteínas, a bioética orienta os algoritmos e a “arte da medicina” (techné iatriké) reencontra seu frescor no entrelaçamento sensorial das IAs multimodais.Uma biomedicina rumando às exatas sem perder a sua vocação relacional.

A história das ciências nos mostra que esse tipo de hibridismo é motor de progresso. A Física clássica, por exemplo, ao se abrir à matemática no século XVII, deixou de ser um catálogo de observações empíricas para se tornar a ciência dos princípios universais — dando origem a tudo, do motor ao GPS, redefinindo a própria noção de movimento. A Química, ao incorporar a termodinâmica e a física quântica, tornou-se capaz de explicar o invisível e manipular moléculas com precisão que só a espectroscopia alcança. E a Biologia, ao integrar a estatística e a computação, transformou-se na ciência dos genomas, das redes neurais e das biofábricas proteicas.

Agora é a vez da Medicina. Já tratamos tumores com feixes de prótons guiados por modelos matemáticos, identificamos doenças raras por correlações genômicas que ultrapassam a sagacidade humana e vigiamos corações, pulmões e cérebros em tempo real com sensores que falam a língua dos dados. Essa imersão nas Exatas não substitui o médico — amplia-o, oferecendo-lhe “superpoderes” para decifrar o organismo e antecipar riscos. Em vez de lamentar a suposta perda de uma medicina puramente clínica, devemos celebrar uma medicina intrinsecamente multidisciplinar, onde físicos, engenheiros, matemáticos e clínicos trabalhem no mesmo tablado. Tudo se passa como num ecótono — a faixa de transição onde dois ecossistemas se interpenetram. É exatamente ali, nesse ecótono entre Ciências Biomédicas e Exatas, que China, EUA, Europa e o resto do mundo devem se entender, se beliscar e prosperar.

Os EUA continuam a ser a maior usina de “Ciências da Vida” do planeta, pretendendo sê-la sozinho — ambição inexequível. Quando a China cria avatares clínicos, clonando médicos experientes para prover assistência escalar, está, tal qual ocorreu na aliança da medicina ancestralcom a medicina analítica, fundindo as Ciências Biomédicas com as Exatas, parindo uma cosmologia mais equitativa e menos assimétrica. Não será diferente nos EUA, independentemente de quem esteja sentado no Salão Oval.

Nem todo clínico aceitará a ideia de que as ciências estão se fundindo. Longe disso. Mas é bom lembrar que há poucos anos era comum pensar que todo médico deveria aprender a programar, pois o mainstream alertava: “tudo é código e tudo será programável”. Na verdade, aconteceu o contrário, a Ciência da Computação, o lado B dessa fusão, criou uma tecnologia para que ninguém precise programar. Melhor ainda: a IA transformou a linguagem de programação em linguagem natural. Assim, todo médico agora é um programador. Esse é o milagre da fusão: qualquer clínico pode programar qualquer coisa que valorize a sua prática sem entender nada sobre códigos de instrução. Não há milagres. O que a Medicina vê agora é o mundo como ele é e como continuará a ser. O que ela não enxergar, será exatamente o abismo que a separa desse novo mundo.

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)
Curador FDHIC