A gestão da saúde no Brasil enfrenta desafios crescentemente complexos em meio à elevada demanda por serviços, ao envelhecimento populacional e à pressão por resultados financeiros, especialmente nas grandes redes de operadoras de saúde, redes hospitalares e conglomerados verticalizados de capital aberto. Nesse cenário, a métrica de quantidade de leitos não apenas serve como referência para medir a capacidade de atendimento, mas também esconde profundas discrepâncias relacionadas à sustentabilidade financeira e assistencial do setor. É imprescindível, portanto, repensar o papel dessa métrica nas estratégias de saúde, buscando alternativas que promovam eficiência, acesso e qualidade sem comprometer os recursos limitados do sistema.

Leitos hospitalares: a métrica hegemônica

Segundo dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), a internação hospitalar representa mais de 60% dos custos totais na saúde suplementar. Isso decorre tanto da complexidade clínica dos atendimentos quanto da manutenção das estruturas associadas à internação, como equipes multiprofissionais, equipamentos de diagnósticos e dispositivos médicos avançados, medicamentos e insumos.

O modelo atual concentra suas operações em grandes hospitais com centenas de leitos, denominados centros de excelência devido à sua infraestrutura robusta e aos recursos ofertados. Entretanto, essa abordagem cria uma dinâmica paradoxal: estruturas de grande porte exigem ocupação constante, seja em UTIs ou em internações de média e longa permanência, sob o risco de gerar ociosidade, um problema que impacta tanto os indicadores de eficiência quanto os resultados financeiros destes hospitais empresa.

Para as grandes redes com capital em bolsa, o viés de mercado é particularmente evidente. A operação de grandes hospitais exige retorno sobre os investimentos realizados, frequentemente resultando em estratégias orientadas à ocupação plena dos leitos. Embora até 80% dos casos cirúrgicos eletivos sejam de baixa e média complexidade, passíveis de serem realizados com total segurança e efetividade em regime ambulatorial, o modelo hospitalocêntrico dominante pode ser responsável por estimular internações desnecessárias, procedimentos pouco custo-efetivos ou estratégias de vendas agressivas, contribuindo para um ciclo de aumento de custos, sem necessariamente entregar melhorias substanciais na qualidade assistencial.

O impacto no sistema de saúde

O foco excessivo nos hospitais gerais de grande porte como centros nevrálgicos da assistência tem comprometido a sustentabilidade do setor no Brasil. Os hospitais de grande porte consomem investimentos que frequentemente ultrapassam centenas de milhões de reais, abrangendo construção de grandes áreas, uma infinidade de equipamentos de alto custo e manutenção de grandes equipes multidisciplinares altamente especializadas. À medida que novos hospitais de grande porte são inaugurados, crescem as pressões financeiras, não apenas pelo custo inicial da operação, mas pela necessidade de maximizar a utilização dos leitos, como importante fonte de receita operacional, para equilibrar o custo e gerar lucros.

Além disso, a mentalidade hospitalocêntrica concentra grande parte dos recursos da saúde em poucas estruturas, gerando desigualdade de acesso e limitando a expansão de serviços em regiões menos atendidas. O fluxo constante de investimentos em hospitais de grande porte acaba negligenciando unidades mais compactas, com foco em soluções ágeis e efetivas, criando um sistema desequilibrado e frequentemente insustentável.

O resultado financeiro das operadoras: sustentabilidade ou privação de acesso?

A questão financeira é crucial neste cenário. Em 2024, os planos de saúde registraram lucro líquido expressivo de R$ 11,1 bilhões, um aumento de 271% em comparação com 2023, superando inclusive o resultado dos três anos anteriores somados. De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), esse valor representa aproximadamente 3,16% da receita total de R$ 350 bilhões do setor.

A sinistralidade no último trimestre de 2024 foi de 82,2%, a menor para este período desde 2018, indicando que as operadoras estão utilizando uma parcela menor das mensalidades para cobrir despesas assistenciais. As operadoras médico-hospitalares de grande porte concentraram R$ 9,2 bilhões desse lucro, com uma diferença positiva de R$ 4 bilhões entre receitas e despesas assistenciais diretas.

Esse cenário evidencia o paradoxo econômico do sistema: enquanto hospitais de grande porte precisam manter alta ocupação de leitos para justificar seus custos operacionais elevados, as operadoras de saúde aumentam sua lucratividade quando conseguem reduzir internações e procedimentos hospitalares. Esta contradição reforça a necessidade de repensar o modelo assistencial, buscando alternativas mais eficientes.

Cabe avaliar criticamente o aumento dos lucros registrados pelas operadoras, que não necessariamente refletem maior eficiência operacional ou melhorias na assistência aos beneficiários. Estes resultados financeiros positivos podem estar associados a mecanismos de privação de acesso aos serviços, imposição de restrições assistenciais e práticas prejudiciais que afetam toda a cadeia de prestadores.

Hospitais, fornecedores de órteses, próteses e materiais especiais (OPMEs), bem como os próprios médicos, são submetidos a condições que podem comprometer a qualidade do atendimento. Na prática, as empresas do setor lidam com prazos extremamente dilatados para autorização de faturamentos e emissão de notas fiscais de casos realizados há muitos meses ou até mesmo há mais de um ano, enfrentando problemas fiscais, tributários e de fluxo de caixa, o que compromete investimentos em inovação e melhoria de serviços que beneficiariam diretamente os pacientes e contribuiriam para uma relação equilibrada e sustentável do setor.

Unidades cirúrgicas ambulatoriais: uma alternativa custo-efetiva

Como contraponto ao modelo hospitalocêntrico, as Unidades Cirúrgicas Ambulatoriais (UCAs) já se consolidaram como modelo assistencial cirúrgico viável em diversos países e ganham cada vez mais adeptos e atenção no Brasil. Estas unidades têm demonstrado ser uma solução eficaz para até 80% das demandas cirúrgicas eletivas, como procedimentos de baixa e média complexidade que não exigem internação prolongada. Nessas unidades, a métrica principal para gestão não é a quantidade de leitos, mas o output cirúrgico, ou seja, a quantidade de procedimentos cirúrgicos realizados com qualidade, segurança e custo-efetividade.

A estrutura das UCAs oferece vantagens claras em termos de custo, acesso e segurança. Por não possuírem unidades de internações longas ou UTIs (mas serem regulamentadas como um hospital geral e possuírem estrutura completa de suporte a vida, com equipamentos e equipe multidisciplinar especializada, para a eventualidade de qualquer intercorrência), seu custo operacional é significativamente menor, permitindo ampliar a oferta de serviços a populações maiores, com redução de custos, sem comprometer qualidade ou segurança. Além disso, essas unidades favorecem fluxos ágeis, reduzindo o tempo de exposição dos pacientes a infecções hospitalares (UCAs possuem taxas de infecção significativamente menores do que hospitais gerais) e promovendo a recuperação em domicílio, contribuindo para a satisfação e segurança do paciente.

Para gestores, a adesão a esse modelo representa uma oportunidade de otimizar recursos e ampliar o acesso à assistência, especialmente em um cenário de escassez de financiamento e demandas crescente por acesso a serviços cirúrgicos e tratamentos mais avançadas. Importante destacar que isso não significa a substituição total de hospitais gerais tradicionais, mas uma redistribuição inteligente de serviços e a priorização de estratégias mais sustentáveis, considerando que a cirurgia ambulatorial pode reduzir os custos globais de internação em até 60%, em comparação com a cirurgia realizada no hospital geral.

A quebra do ciclo hospitalocêntrico: o papel dos gestores

Repensar a centralidade dos hospitais na assistência à saúde requer mudança de mentalidade tanto por parte de gestores quanto de profissionais da saúde. É fundamental que os tomadores de decisão em grandes redes e órgãos públicos avaliem a eficácia das instituições não apenas pelo número de leitos preenchidos, mas pelos desfechos clínicos, custos evitados, eficiência operacional e satisfação dos pacientes.

É essencial abordar a sustentabilidade do sistema de saúde de forma ampla, investindo em modelos híbridos que combinem grandes hospitais para casos de alta complexidade com redes descentralizadas de unidades menores e especializadas, como as unidades cirúrgicas ambulatoriais. Essa abordagem pode desafogar os hospitais, direcionando-os para casos que realmente exigem internação, e simultaneamente ampliar a cobertura assistencial em um modelo sustentável e custo-efetivo.

Gestores de grandes redes de saúde também precisam buscar ferramentas tecnológicas avançadas, como inteligência artificial e análise de dados, para otimizar o uso dos leitos e evitar ociosidade sem recorrer a práticas questionáveis. Combinado ao fortalecimento de modelos de remuneração baseados em valor (e não em volume), esse tipo de inovação pode alinhar objetivos financeiros às reais necessidades da população para uma saúde mais resolutiva e acessível.

Criando valor com modelos viáveis

A mentalidade hospitalocêntrica, alicerçada na métrica de quantidade de leitos, está no centro de um ciclo insustentável que precisa ser redesenhado. À medida que técnicas cirúrgicas, dispositivos médicos, medicamentos e estruturas ambulatoriais avançam, permitindo procedimentos menos invasivos com recuperação mais rápida sem internação hospitalar, a necessidade de ocupação de leitos também se reduz, favorecendo a mudança desta mentalidade.

Embora grandes hospitais tradicionais continuem tendo papel indispensável na assistência, sua expansão descontrolada e a pressão por ocupação a qualquer custo comprometem tanto a saúde financeira das instituições quanto o futuro do sistema como um todo. Os modelos baseados em unidades ambulatoriais oferecem uma alternativa promissora, alinhada às necessidades dos pacientes e à sustentabilidade econômica, constituindo o futuro inevitável da assistência cirúrgica no país.

Para os gestores, o desafio está em equilibrar a utilização de grandes estruturas com a ampliação de abordagens mais eficientes e descentralizadas, um movimento fundamental para garantir um sistema de saúde economicamente viável e centrado no paciente. Afinal, o sucesso da saúde no Brasil não pode ser medido apenas em leitos ocupados, mas em vidas transformadas com eficiência e valor.