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Adib Jatene: trajetória acadêmica ganhou reconhecimento mundial

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- Divulgação
Mais que homem público militante do SUS, médico desenvolveu procedimentos cirúrgicos inovadores e foi ovacionado também fora do Brasil

Adib Jatene, morto em 14 de novembro, aos 85 anos, conciliou uma brilhante carreira como cirurgião – cerca de 20 mil operações do coração – com uma igualmente intensa vida pública: foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo (1979-1982), ministro da Saúde nos governos Collor de Mello (1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1996) e membro dos conselhos Nacional de Seguridade Social e Federal de Educação, entre outros cargos.

Mas foi, sobretudo, um pesquisador comprometido com o desenvolvimento de novas técnicas que fizessem avançar a Medicina e aumentar as oportunidades de cura ou a qualidade de vida dos pacientes. É dele, por exemplo, a proposta de um novo procedimento cirúrgico para a correção da Transposição das Grandes Artérias (TGA), cardiopatia congênita mais frequente no período neonatal.


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Na TGA, a anatomia normal do coração está invertida: o lado direito, em vez de enviar o sangue para o pulmão, envia para o corpo, e o esquerdo, direciona o sangue para o pulmão. “As técnicas cirúrgicas utilizadas até então faziam um desvio dentro do átrio do coração, sem mexer nos vasos sanguíneos”, explica Marcelo Jatene, diretor da Unidade Cirúrgica Cardíaca Pediátrica do Instituto do Coração (Incor), professor da Universidade de São Paulo (USP) e filho de Adib Jatene. A Operação de Jatene, como essa técnica ficou conhecida, corrige a anatomia do coração, alterando os vasos sanguíneos, inclusive as coronárias.

Em 1975, Adib Jatene teve apenas dois minutos para apresentar o novo procedimento a 400 cardiologistas reunidos no Henry Ford Hospital, em Detroit. Foi ovacionado e ainda ganhou a primeira página do jornal USA Today. “Foi a maior emoção de minha vida”, ele disse à Revista do Incor, na edição de dezembro 1998/janeiro 1999.

Na época, há quase 40 anos, houve resistência na adoção de uma técnica que, até hoje, é complexa e exige treinamento. “Mas, na medida em que o tempo passou, a qualidade de vida dos pacientes e a sua sobrevida melhoraram”, diz Marcelo Jatene. A Operação de Jatene – descrita no artigo Anatomic correction of transposition of great vessel, publicado em 1976 e assinado por ele e outros cinco especialistas – é, atualmente, a principal opção para correção da TGA nos centros de cardiopediatria.

A Operação de Jatene não foi o único legado do cardiologista. Ele também desenvolveu o primeiro coração-pulmão do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), nos anos 1950, e realizou a primeira cirurgia de ponte de safena no Brasil, em 1968. “O que o caracterizava era uma enorme capacidade de inovar, não apenas no campo da cirurgia, mas também no de máquinas”, afirma o cardiologista Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente do Conselho Superior da FAPESP.

O próprio Jatene contou em entrevista a Drauzio Varella que começou a “mexer” com coração artificial quando foi professor de anatomia topográfica em Uberaba, Minas Gerais, dois anos depois de se formar na FMUSP, em 1953.


“O proprietário de uma retificadora de motores, Chiquinho Veludo, resolveu me ajudar e colocou um torneiro mecânico, o Chicão, à minha disposição com um torno, uma furadeira e um esmeril. Ali foi construído o oxigenador. Foi então que o professor [Euryclides de Jesus] Zerbini me chamou de volta para o Hospital das Clínicas. Ele tinha importado duas máquinas e era difícil fazê-las funcionar. Como não havia componentes para substituir os que quebravam, a solução foi fazer a nossa máquina com os componentes que eram encontrados na rua Santa Efigênia, em São Paulo.”

No Hospital das Clínicas, entre 1958 e 1961, organizou um laboratório experimental e de pesquisa onde desenvolveu e construiu o primeiro aparelho coração-pulmão artificial da instituição. O laboratório tornou-se um departamento de bioengenharia. “O doutor Adib criou, com o doutor Zerbini, a Oficina Coração-Pulmão, que depois se tornou a Divisão de Bioengenharia. Isso foi feito a partir da percepção da importância de se desenvolver localmente a tecnologia necessária para impulsionar o avanço da cirurgia cardíaca no Brasil”, afirma Idagene Cestari, diretora do Centro de Tecnologia Biomédica do Incor.

“A criação de um polo de inovação e de suporte à tecnologia médica e sua aplicação no diagnóstico e tratamento das doenças cardiovasculares antecipou em mais de 50 anos o que hoje é conhecido como Medicina Translacional, o que, além de notável, continua gerando contribuições científicas e tecnológicas relevantes, que são, certamente, parte do seu legado.”

Em 1961, Jatene passou a integrar a equipe do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (IDPC), onde, a par de suas atividades de cirurgião, fabricou válvulas cardíacas artificiais, marca-passos e oxigenadores descartáveis. “Desenvolvemos primeiro um oxigenador descartável de bolhas. São tubos de 200 micras de diâmetro, com 35/40 micras de espessura de parede, que permitem a troca gasosa. Depois, fizemos oxigenadores de membranas”, ele lembrou a Drauzio Varella. A oficina de bioengenharia virou o Centro Técnico de Pesquisas e Experimentos.

Jatene era o que o seu amigo e também cardiologista Fulvio Pileggi qualifica de “predestinado”. “ Se não fosse médico, teria sido o melhor advogado, o melhor engenheiro, o melhor marceneiro e o melhor torneiro mecânico.” Pileggi, que foi diretor-geral do Incor, conta que Jatene demonstrou sua habilidade com um torno mecânico do instituto a um político, cujo filho ele havia operado, e recebeu de volta um elogio inesperado: “Você é melhor torneiro do que eu.”

Caminho da cardiologia
Adib Jatene, que foi autor ou coautor de cerca de 800 trabalhos científicos, chegou à cardiologia sem querer. Nascido em Xapuri, no Acre, filho de um seringueiro libanês que morreu de febre amarela quando ele tinha apenas dois anos, tinha intenção de fazer Saúde Pública. Cresceu em Uberlândia, Minas Gerais, mas pretendia voltar ao Acre depois de se formar médico, segundo contou na entrevista a Varella.

“Acontece que, em 1951, no treinamento de cirurgia, entrei no grupo do professor Zerbini que operou, em maio desse ano, o primeiro doente com estenose mitral”, ele disse. Envolveu-se com tudo aquilo e, quando percebeu, estava “enrolado” com a cirurgia cardíaca. Foi diretor-geral do Hospital do Coração da Associação do Sanatório Sírio e, em 1983, com a aposentadoria de Zerbini, prestou concurso para o cargo de professor titular de Cirurgia Torácica da Faculdade de Medicina da USP, que acumulou com a posição de diretor do Instituto do Coração.

Ao longo de toda a carreira, nunca afastou sua atenção da Saúde Pública. Em 1999, teve apoio da FAPESP em um projeto de Auxílio à Pesquisa para avaliação do Projeto Qualis, que começou a ser implantado no município de São Paulo em 1996, por meio de uma ação conjunta entre o Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, na administração Mário Covas, e duas organizações sociais: a Casa de Saúde Santa Marcelina e a Fundação Zerbini.

Ministro da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso por 22 meses, fez avançar o projeto dos medicamentos genéricos e de programa de combate à Aids, criou o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) e deu grande atenção aos programas de Saúde da Família e Agentes Comunitários.

“O dr. Adib Jatene associou prática e pesquisa ampliando os horizontes da Medicina e soube transpor para a vida pública as suas experiências de médico e professor, criando e implantando políticas públicas na área de saúde para o bem do Brasil”, disse Celso Lafer, presidente do Conselho Superior da FAPESP.

Preocupava-o muito a formação de médicos e a qualidade do atendimento de saúde no país. Formara-se em Medicina em um tempo em que os alunos frequentavam a enfermaria já no segundo ano do curso e, no sexto ano, estavam preparados para atender pacientes, lembra Pileggi, contemporâneo de Jatene na FMUSP.

Em depoimento à Assembleia Legislativa de São Paulo, em fevereiro de 2009, Jatene deixou claro que o Brasil precisava sim de mais cursos de Medicina, mas era preciso preocupar-se com a qualidade da formação. “Quem conhece as periferias das cidades sabe que ali não há médicos. Eles estão concentrados em áreas de mais recursos e não vão para áreas de poucos recursos. O resultado é que existe uma grande dificuldade de se conseguir médicos para o Programa Saúde da Família. Abrem-se vagas com boa remuneração e não aparece candidato. Por quê? Não é só porque essas áreas são mais pobres. É porque o médico não foi treinado para atender essa população. Ele foi treinado para usar tecnologia, para ficar em um hospital onde tenha supervisão. E não sendo treinado adequadamente, não sente condições de enfrentar a população.”