De expressão intensa e raciocínio rápido, Viviane Mosé, filosofa e escritora, descreve o caos de uma sociedade em transição, que passa de uma era industrial para a digital reproduzindo incoerências a partir de valores completamente distintos de um período para o outro.
Temos o Bluetooth, a fibra ótica, a democratização do conteúdo e a multiplicidade midiática, mas também assistimos o espancamento de uma menina por colegas incomodadas por ela ser a mais bonita, presenciamos atos racistas nos estádios de futebol, assim como mais da metade da população toma remédios psiquiátricos e o Brasil subindo no índice de suicídios.
O conjunto de uma alta capacidade tecnológica e a presença, ainda forte, de uma mentalidade medieval, como caracteriza Viviane, produz um senso de não fragilidade e a perda da noção de humanidade. Somos incapazes hoje de lidar com a frustração e o sofrimento. Queremos transformar tudo em tecnologia, diz.
A transição está no rompimento de valores e modelos antigos de se relacionar fenômeno este impulsionado pela ampla disseminação de conteúdo, semelhante ao que ocorreu na época renascentista, com a circulação de livros após a criação da prensa por Gutenberg.
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Viviane, que também é poeta e psicanalista, enxerga o ser humano como um vulcão ambulante, que todo o dia é amarrado para poder conviver. O que eu faço com minha força? Consigo transformar a minha frustação em arte, em trabalho, em produtividade? Essas intensidades vão sendo controladas, mas não desaparecem. E a mudança de valores desfaz essas amarras e evidencia essas intensidades.
Hoje, assim como as empresas já não vendem mais produtos e, sim, experiências, a violência também não acontece mais por um par de sapatos ou prato de comida, mas persegue um conceito, algo subjetivo. O avanço tecnológico, segundo Viviane, está acabando com as desigualdades objetivas, promovendo acesso a objetos, coisas, produtos, antes usufruídos apenas pelos ricos.
Enquanto a era digital avança, eclode a desigualdade do conhecimento, agravada por um sistema educacional arcaico, que continua ensinando aos jovens de hoje análise sintática e morfológica, obras de Machado de Assis, tabela periódica, sobre a vinda da família real para o Brasil, assuntos facilmente encontrados pelo celular. Enquanto isso, a gente não discute a vida, o tempo, o ser humano. Não discutimos e nem exercitamos o relacionamento, ressalta Viviane. Temos que aproveitar o caos e ampliar nossa capacidade, afirma a filósofa apontando claramente o relacionamento e a educação como meios para uma sociedade mais coesa.
Apesar de acreditar que atravessamos uma crise política-social, ambiental e tecnológica, os humanos, para Viviane, são como ervas daninhas, sempre dão conta do recado e alguns exemplos desta era digital já demonstram que teremos pessoas mais capazes de lidar com sua própria solidão, caso contrário, não teremos sociedade.
Esse povo extremamente criativo que amo tanto precisa de uma coisa para organizar essa bagunça: educação viva e corajosa que nos faça lidar com a vida de uma maneira melhor.