Sua imponência fulgura por entre os contornos precisos de uma arquitetura milenar. Não é preciso ser um entendido sobre o estilo gótico, em que as construções expressam uma comunhão com a religião, para ser pego contemplando a sede da Santa Casa de São Paulo, que domina um quarteirão inteiro no bairro Santa Cecília, região central da capital paulista.
As portas e janelas altivas, os móveis, em sua grande maioria de madeira escura – como jacarandás e imbuias -, os objetos provenientes da arte sacra, todos os detalhes o conduzem para uma viagem no tempo. Apesar das características sóbrias, os tijolos alaranjados do complexo hospitalar contrastam com o verde dos jardins, contribuindo para suavizar o ambiente da unidade central da Santa Casa, que possui, ao todo, mais 13 hospitais, duas policlínicas, uma UPA, três pronto-socorros municipais e 12 Unidades Básicas de Saúde; e constitui-se como o maior hospital filantrópico da América Latina, atendendo cerca de oito mil pessoas diariamente em todas as especialidades médicas.
Assim como as missões jesuíticas trazidas pelos portugueses durante o processo de colonização do Brasil, as casas de misericórdia ? originárias de Lisboa ? eram outro sinal da ocupação europeia. E, desde então, há mais de 400 anos, a entidade paulista é referência em medicina no País.
A instituição protagonizou alguns fatos históricos ? sempre regidos sob a finalidade de exercer a caridade, misericórdia para o socorro e assistência aos enfermos. O amparo a crianças abandonadas por meio da famosa ?Roda dos Expostos? desde 1825, o tratamento dos soldados feridos com a Revolução de 1932 e a criação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo em 1963 foram alguns desses momentos.
Ao caminhar nos dias de hoje pela unidade principal, é fácil perceber sua origem abastada, mantida pela aristocracia brasileira e portuguesa. ?Quando as pessoas de famílias ricas morriam, boa parte dos bens eram doados para as Santas Casas?, conta o superintendente Antonio Carlos Forte, que há 20 anos dedica-se à administração da entidade.
Tal costume já não condiz com os dias de hoje em que os graves problemas financeiros imperam, representados por uma dívida de R$ 120 milhões. Apesar disso, a Santa Casa é reconhecida nacionalmente pelo desenvolvimento de pesquisas técnico/científicas, possui um dos maiores serviços de captação de órgãos e tecidos do mundo, é referência nos atendimentos de Ortopedia, Pediatria, serviços de alta complexidade como Neurocirurgias e Transplantes, e de Emergência ? tendo o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) como o seu maior cliente, seguido por entidades de classe como a do Corpo de Bombeiros e Metroviários.
Estrutura de gestão
Cerca de 500 colaboradores voluntários compõe o Conselho de Irmãos da Santa Casa. Destes, são eleitos 50 participam da mesa administrativa, que também contempla o provedor (presidente) – atualmente sob o comando de Kalil Rocha Abdlla -, vice-provedor, escrivães, mordomos, tesoureiros e procuradores jurídicos.
?O provedor é o responsável legal. O restante geralmente aparece uma vez por mês para acompanhar o planejamento estratégico?, explica Forte, que não descarta o caráter burocrático do organograma, que ainda segue o modelo de Portugal.
Hoje, a entidade não possui nenhuma relação com a igreja católica, constituindo-se como uma instituição laica, filantrópica e privada.
Além da diretoria executiva, espécie de conselho de acionistas, existem os cargos de coordenadores, divididas pelos tipos de gestão (OSS ou próprios), e a administração corporativa, em que cargos de diretoria centralizam a demanda de todas as unidades da Santa Casa: Diretoria Financeira, Recursos Humanos, Ensino Profissionalizante, Diretoria de Enfermagem, Assistência Farmacêutica, Engenharia e Operações, Tecnologia da Informação e Qualidade e Desenvolvimento Organizacional.
?Os líderes corporativos cuidam para que a conduta médica seja igual em todas as unidades?, enfatiza Forte. A tecnologia da informação auxilia nesse objetivo, tanto é que os sistemas assistências, desenvolvidos internamente, e os de back office, contratados do mercado, são iguais para todos os empreendimentos hospitalares da Santa Casa. Forte antecipa que o prontuário eletrônico ? presente apenas no Hospital particular Santa Isabel II -, deve ser implementado para todo o complexo nos próximos meses.
Sobrevivência
Por ser referência emergencial, o pronto-socorro da Santa Casa de São Paulo é a porta de entrada para o hospital. Tendo sofrido um aumento de 30% no último ano, o local atende mais de mil pacientes por dia e, em meados de 2011, ameaçou fechar as portas, caso não recebesse mais recursos do governo.
Com uma capacidade para 200 leitos, a unidade está sempre lotada e, em média, 60 a 80 macas são espalhadas a mais pela emergência diariamente. ?Os doentes chegam e não temos lugar. Eles ficam em macas pelos corredores?, lamenta o superintendente.
A partir de um orçamento de R$ 1,2 bilhão, os atendimentos voltados ao Sistema Único de Saúde (SUS) – 95% do total – contabilizam um déficit de R$ 5 milhões por mês, segundo Forte.
?Precisamos ter mais R$ 60 milhões por ano para o balanço zerar?, compartilha o executivo, que utiliza outros meios de financiamento para tentar amenizar o rombo da instituição.
Os Santa Isabel I e II, únicos hospitais que atendem convênios médicos do grupo, foram construídos com recursos da entidade para justamente auxiliar no financiamento e fidelização dos médicos às unidades da Santa Casa. Além deste, a verba decorrente do aluguel de mais de 250 imóveis, de parcerias como a da Nota Fiscal Paulista, que resultou em R$ 6,5 milhões até o momento, são exemplos de outros subterfúgios para a arrecadação de dinheiro.
Apesar das adversidades, o superintendente garante que a qualidade assistencial e os colaboradores não são impactados. ?Nossos salários são de mercado. A Santa Casa tem um compromisso em mantê-los. Não deixamos que as dificuldades financeiras cheguem até o corpo funcional e nem no nível assistencial. Em nossas grandes crises não falta nada. O endividamento fica restrito aos bancos?, enfatiza.
Saída
O cenário crítico resvala em algumas soluções que estão por vir. Forte está esperançoso e leva em consideração a boa gestão do atual ministro Alexandre Padilha.
No final do ano passado, o governou anunciou o programa SOS Emergência, com a finalidade de melhorar a gestão e qualificar o atendimento nos maiores prontos-socorros do País. Com a medida, Forte explica que o valor pago pelo leito do PS passará de R$ 480 para R$ 800 e pela Unidade de Terapia Intensiva, de R$ 150 para R$ 300.
Outra proposta para regionalizar o atendimento e, assim, distribuir a demanda, recentemente aprovada, foi a construção de uma AMA/UPA (Atendimento Médico Ambulatorial/Unidade de Pronto Atendimento) na rua Marques de Itu, cujo terreno foi cedido pela Santa Casa. A unidade 24 horas terá a capacidade para atender mil doentes por dia.
?Dessa forma, o PS será referenciado. O que não for resolvido lá vem para cá. Isso soluciona a porta de entrada?, explica.
Para resolver a porta de saída, ou seja, os doentes que ficam em macas por falta de vagas, a entidade está tentando alugar um hospital desativado na região ? para que exerça o papel de uma retaguarda do PS. ?Quando o doente estiver estável, mas ainda precisando de internação, será transferido para lá?, conta Forte, mantendo em sigilo o nome do hospital.
Para o superintendente, a causa dos problemas por que todas as Santas Casas brasileiras estão enfrentando referem-se a uma só palavra: recurso. Com um déficit de R$ 5 bilhões, muitas dessas instituições seculares gritam por ajuda.
As filas, a demora para o atendimento, a falta de infraestrutura dos hospitais, todos os entraves da saúde brasileira hoje, na opinião de Forte, perpassam pela falta de recursos, o que limita o acesso à assistência.
?Esses hospitais de ensino têm uma importância muito grande para a medicina. Se estiverem ?mal? acabam formando mal seus profissionais e isso vira uma bola de neve, afinal, os médicos dos hospitais cinco estrelas do País também são formados nessas instituições. O problema não é de gestão. Fazer mais com menos, o Brasil faz. O problema está no acesso ao sistema?.