A resolução de número 36 que a diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou em julho passado é tão ambiciosa quanto polêmica. Apesar dos nobres objetivos de aumentar a segurança do paciente e melhorar a qualidade dos serviços prestados, a regra não foi bem recebida pela comunidade médica, que vê problemas na forma de implementação das medidas.
A diretiva da agência reguladora estabelece que todos os serviços de saúde do Brasil criem, até o final de novembro, um novo departamento: o Núcleo de Segurança do Paciente (NSP). A resolução ainda exige que este organismo, que terá pessoal e recursos financeiros próprios, formate e execute um elaborado plano de segurança do paciente e passe a informar mensalmente à Anvisa, de forma compulsória, todos os eventos adversos que ocorrerem dentro da instituição.
Com isso, a Anvisa espera ter criado as medidas necessárias para dar vida ao Programa Nacional de Segurança do Paciente, lançado em abril pelo governo federal. Contudo, médicos e especialistas envolvidos com o tema não acreditam que a resolução, do jeito que está colocada, produzirá algum efeito prático.
Ninguém, nem mesmo a Anvisa, acredita que todos os hospitais brasileiros terão efetivamente instituído o NSP até o final do prazo de 120 dias, contados a partir da publicação da resolução no dia 26 de julho. ?A gente sabe que é bem complicado nesse prazo. Não temos a pretensão de que todos estejam implantados?, diz a gerente de vigilância e monitoramento em serviços de saúde da Anvisa, Magda Machado de Miranda Costa, uma das responsáveis pela edição da resolução. Apesar disso, ela afirma que ainda não se discute a extensão do prazo de implantação dos núcleos. ?Nenhum hospital fez essa solicitação por enquanto?, acrescenta.
A gerente de risco e segurança assistencial do Hospital Albert Einstein, Paola Andreoli, não vai precisar se preocupar com a resolução 36, pois a instituição em que trabalha já cumpre tudo o que a Anvisa está pedindo na nova regra e, inclusive, é a referência no Brasil no assunto. Mas Paola conta que a estruturação da área de gestão de risco leva tempo e vem ocorrendo desde 2006. Para ela, o processo de incorporação destas práticas nas instituições de saúde precisa ser feito de forma progressiva. ?Acho que o tempo [120 dias] para implantação da resolução foi, no mínimo, ousado. Será um caminho transitório, vai ter que ser progressivo?, pontua a executiva.
O diretor de Relações Institucionais e Coordenador de Educação do Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA), Heleno Costa Júnior, afirma que até mesmo os hospitais acreditados terão dificuldades para operacionalizar a resolução da Anvisa. ?A gente não tem profissionais capacitados para isso. Hoje, existe mais o perfil do gestor da qualidade, que é uma qualificação diferente do gestor de risco e segurança?, pondera. ?Você não pode esperar de uma instituição que nunca teve uma estrutura de gestão da segurança que em 120 dias ela consiga fazer isso?, critica. Para ele, ?deveria haver primeiro um movimento de divulgação, conscientização e fundamentalmente de capacitação para que então os núcleos fossem devidamente constituídos?.
Envolvido no Comitê de Implementação do Programa Nacional de Segurança do Paciente, criado no bojo do programa, o médico, pesquisador e professor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Walter Mendes, defende a criação dos NSPs. ?Precisa cobrar dos hospitais a implantação do núcleo o mais rápido possível. Temos que entender esse núcleo como um articulador entre outros órgãos dentro do hospital?, opina. No ano que vem, a ideia da Fiocruz é dar um curso de capacitação para cerca de mil profissionais que estejam atuando nos NSPs.
Apesar de favorável à criação dos núcleos, Mendes discorda pessoalmente da exigência de obrigar os profissionais a realizar a notificação dos eventos adversos. Ele acha que a forma de notificar eventos adversos relacionados a produtos e materiais médicos não deve ser a mesma para relatar os incidentes que envolvem os processos clínicos. ?Com o produto, você precisa especificar a origem, quem usou, o código de barra etc. No processo clínico, é o contrário. Você não quer identificar nem o paciente, nem o médico. Você tem que estar preocupado com o processo em si?, avalia. Para ele, é essencial manter a confidencialidade e o anonimato das notificações. Sobre a obrigatoriedade, ele não acredita que isso possa aumentar o número de notificações informadas. ?O obrigatório se torna relativo. Se eu não notificar, ninguém vai saber que eu não notifiquei?, alerta o estudioso.
De acordo com Magda, da Anvisa, a decisão de se instituir a obrigatoriedade da notificação veio com base no exemplo da notificação voluntária de produtos, que vem sendo feita por hospitais que compõem a Rede Sentinela. ?Voluntariamente, a coisa não ia acontecer. O sistema [de notificação de produtos] que funciona hoje é facultativo. Poucos aderem?, garante a reguladora.
Os médicos Guilherme Barcellos e Alfredo Guarischi criticam duramente a resolução 36 e veem um viés político por trás das medidas. Barcellos, que integra o programa de Gestão da Qualidade e da Informação em Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, diz que a sensação após a publicação da resolução é de que ?a Anvisa está querendo muito mais coletar dados para gerar números e indicadores ao invés de implementar um programa de segurança do paciente?. ?Estamos a poucas semanas para que a regra entre em vigor e até hoje a gente não sabe exatamente o que eles vão fazer com esses dados e quais os mecanismos reais de segurança da informação que eles vão aplicar?, reclama o profissional.
Guarischi, que é médico-cirurgião, membro da Câmera Técnica de Oncologia do Cremerj e organizador do evento Safety, afirma que a resolução fere o princípio da autonomia médica, além de expor o paciente. ?É uma medida eleitoreira para viabilizar a campanha do Padilha [Alexandre Padilha, ministro da Saúde]?, esbraveja. ?Se você pensa em segurança, pensa em prevenção, treinamento e educação continuada. Isso jamais poderia estar na Anvisa. Deveria existir dentro do Ministério da Saúde um setor multifacetado cuidando especificamente de segurança do paciente?, opina o especialista.
O QUE É A RESOLUÇÃO 36?
A medida tem por objetivo instituir ações para a promoção da segurança do paciente e a melhoria da qualidade nos serviços de saúde.
O QUE ELA CRIA NA PRÁTICA?
? O Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) em cada uma das instituições de saúde do País. Este órgão deve: i) melhorar continuamente os processos de cuidado e do uso de tecnologias da saúde; ii) disseminar sistematicamente a cultura de segurança; iii) articular e integrar processos de gestão de risco; iv) garantir as boas práticas de funcionamento do serviço de saúde.
? O Plano de Segurança do Paciente (PSP) que será elaborado por cada NSP. Ele deverá identificar, analisar, avaliar, monitorar e comunicar os riscos no serviço de saúde; integrar os diferentes processos de gestão de risco desenvolvidos nos serviços de saúde; implementar protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saude; promover a identificação do paciente; higiene das mãos; segurança cirúrgica; segurança na prescrição, uso e administração de medicamentos; segurança na prescrição, uso e administração de sangue e hemocomponentes; segurança no uso de equipamentos e materiais; manter registro adequado do uso de órteses e próteses quando este procedimento for realizado; prevenir quedas dos pacientes; prevenir úlceras por pressão; prevenir e controlar eventos adversos em serviços de saúde, incluindo as infecções relacionadas à assistência à saúde; segurança nas terapias nutricionais enteral e parenteral; manter comunicação efetiva entre profissionais do serviço de saúde e entre serviços de saúde; estimular a participação do paciente e dos familiares na assistência prestada e promover um ambiente seguro.
? Obrigatoriedade do envio mensal à Anvisa das notificações dos eventos adversos ocorridos na instituição de saúde durante aquele mês.
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