Nas mãos de uma pessoa virtuosa, qualquer instrumento pode significar vida. Nas de um pintor, por exemplo, pincel e tinta traçam formatos e cores que dão uma visão particular daquilo que ainda é tão enigmático para o ser humano. Nas de um médico, o bisturi opera milagres e transforma aquilo que, para muitos, é considerado existência. No fim, todos fazem parte de uma trajetória que é movida por enigmas e coincidências que marcam histórias.
?Eu nunca ouvi falar de nenhum Tarsilo?, disse a artista Tarsila do Amaral, um dos maiores nomes do modernismo brasileiro, ao seu ?xará? Tharcillo Toledo Filho, clínico geral e pintor de aquarelas nas horas vagas, numa tarde de 1970. Tarsila, aos 86 anos, era internada no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, por doenças ocasionadas por sua idade avançada. Ela nunca sairia de lá com vida. Seu corpo deixaria o hospital três anos depois, mas as histórias contadas pelos corredores do hospital ficaram na memória do médico e de todos os outros.
Aos 82 anos, Tharcillo soa como um garoto ao relembrar de sua história, que se funde à do hospital e ao desenvolvimento da capital paulista. Seu ingresso na profissão data de 1955, 15 anos antes do encontro com a artista. Mesmo com a preocupação de atender todo e qualquer paciente, alguns acabam marcando mais do que outros, e nenhum ficou tão vívido na mente do doutor Tharcillo quanto sua xará modernista. Muito mais do que ter o mesmo nome da pintora, o médico descobriu, nesse dia de 1970, que eles foram batizados, muito provavelmente, por causa da mesma pessoa.
O jovem médico ficou em sobressalto quando as enfermeiras o disseram que a paciente o chamava. ?Entrei no quarto preocupado, imaginando que fosse alguma emergência. Mas o motivo era outro: curiosidade?, lembra. Ícone feminino que ajudou a transformar os rumos da arte nacional, a pintora não teria medo e deixaria de lado a questão que a intrigava: a origem do nome de seu médico.
?Expliquei que minha avó tinha uma amiga italiana, em Campinas, com esse nome?, conta Tharcillo. A explicação não poderia ser mais interessante e comprovava o elo entre os dois: a mãe da pintora tinha uma amiga italiana com este nome, que morava na mesma cidade. Seria coincidência demais, para aquela época, duas Tarsilas em uma mesma cidade, que nem de longe se parecia com a Campinas de mais de 1 milhão de habitantes dos dias de hoje. ?Chegamos à conclusão de que deveria ser a mesma pessoa?, recorda. O amor pela pintura e o nome em comum se conectam em uma história memorável para o clínico da Benedicência.
A artista, um tanto provocadora, comentou que o nome, derivado de ?Tarso?, deveria ser com ?s? e, não, com ?C?, como o do médico. Mas não contava com o conhecimento de Tharcillo sobre suas obras: ele logo a questionou sobre o porquê de ela, no início da carreira, assinar alguns quadros sob o nome ?Tharsila do Amaral?, diferente da maioria dos pintores, que costumavam assinar com o sobrenome. ?Ela me disse que, no auge do modernismo, queria modernizar também seu próprio nome. Ela era inteligentíssima, charmosa, imagino o impacto que ela deve ter causado naquela época.?
Hospital e profissão
Quando Tharcillo chegou para trabalhar na Beneficência, a entidade estava prestes a completar 100 anos (foi inaugurada em 1859) e ainda funcionava na rua Brigadeiro Tobias, no centro paulistano. Dois anos depois, mudou-se para a região da Bela Vista – uma alteração polêmica porque o local ficava ?longe de tudo?, à época. ?Era ousado, porque ali era uma ribanceira. A avenida 23 de Maio não existia, então o pessoal precisava descer em uma escadinha rústica, passar por uma viela e depois seguir à avenida Liberdade para pegar ônibus?, conta.
O tempo passou e a escolha se provou bem adequada, já que o conjunto hoje está numa região nobre, próximo à avenida Paulista, ao metrô e a diversas paradas de ônibus. Mas Tharcillo mantém sua ideologia original. ?A Beneficência foi fundada para atender toda a população, nunca foi algo comercial. A atuação é no sentido de solidariedade humana?, relata, relembrando que, em 1932, por exemplo, o hospital atuou ativamente para atender os feridos na Revolução Constitucionalista.
Com a experiência de ter passado por praticamente todos os cargos da Beneficência, doutor Tharcillo tem suas sugestões para evolução do atendimento médico no Brasil. ?É preciso dar mais importância para o exame clínico, por exemplo. Os de laboratório são importantíssimos, mas como complementos. Não se pode atender e examinar uma pessoa em apenas dez minutos?, ensina. Para ele, o
País também precisa se preocupar com as regiões mais distantes e que têm condições inadequadas, deslocando jovens profissionais e supervisores para que ocorra uma boa estrutura também nessas cidades, ?desde que a cultura e os costumes locais sejam respeitados?. Tudo isso para o País evoluir na missão de salvar vidas, que é o grande estímulo do incansável doutor Tharsillo. ?Eu tinha colega que sempre dizia: ?ser médico é uma paixão que não tem remédio?. Até nas férias nós queremos tratar e ajudar os outros.?
E ainda hoje, depois de tantas histórias, a coincidência daquela tarde de 1970 não sai de sua memória. Até a morte da pintora, em 1973, Tharcillo a encontrou por mais algumas vezes, ouvindo histórias e histórias da artista que, segundo ele, era muito vivaz. ?Ela nunca queria me deixar ir embora, sempre tinha algo para contar.? Ficaram as lembranças e a admiração pela obra, que agrada até àquele que não conhece nada sobre arte.? E agrada, também, a quem conhece de vida.