Recentemente um paciente que atendi foi para a unidade de terapia intensiva. Um breve
análise evidenciou que:
– Simplesmente não previ a evolução desfavorável;
– Escore de sistema de resposta rápida existente na casa não
captou o paciente em questão. Por falso negativo mesmo! Não era caso de alteração existente e não valorizada;
– Estamos com problemas em cultura de segurança.
Detalho um pouco melhor:
Avaliei o paciente na véspera da admissão em unidade de
terapia intensiva tendo feito episódios hipotensivos. Interpretei como
desidratação apenas. Possivelmente tratava-se já de outra coisa então oculta. No dia em que o doente foi para a UTI, o avaliei duas vezes.
Na primeira não valorizei tosse. Já apresentava história de tosse. Mas havia
alterado padrão. Na segunda, o reavaliei com alguns exames, cheguei a
considerar que estivesse com uma traqueíte, mas sequer prescrevi antibiótico.
Algumas horas depois, estava na UTI. Aspirado por fisioterapeuta, percebeu-se
secreção purulenta. No intervalo entre minha última avaliação na enfermaria e a admissão na UTI, fez febre duas vezes. Mais um caso de infecção diagnosticada tardiamente!
Diagnosticada apenas na unidade de terapia intensiva!
A crítica lá correu solta: como pôde não ver o óbvio?
Declarações em meio a outros profissionais da saúde e até familiares que
transitavam pela unidade…
O fato é que, e sem entrar nos méritos, falhei. Naquele dia
voltei ao hospital envergonhado, fui avaliar pela terceira vez o paciente, e
não precisava de nada ou ninguém para sentir-me assim, além de triste e algo irritado. Analisando retrospectivamente, tudo estava claro como água de
rocha…
Voltemos ao ponto de partida:
– Simplesmente não identifiquei o risco e a gravidade. Mas feliz aqueles
que sabem que isto ocorre, e não somente com os outros. Outro fato é que a soma
das autoimagens dos médicos não bate com as estatísticas dos erros que
cometemos.
Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a
conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos,
penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. SARAMAGO,
José. Ensaio sobre a cegueira.
– Escores de sistema de resposta rápida não são soluções
mágicas que elegem candidatos ideias para beneficiarem-se de cuidados
intensivos, bem como eliminam chance de deterioração clínica imediata naqueles
que pontuam menos. Mais sobre SRRs leia aqui.
– A fragilidade em cultura de segurança tem íntima relação justamente
com o imenso número de profissionais infalíveis que andam por aí, um outro tipo
de cego… E representa o paradoxo atual do brasileiro: cada um de nós,
individualmente ou em grupos, tem a crença de estar muito acima de tudo que nos cerca. É muita corrupção! E como pôde não ver o óbvio? Ninguém aceita,
ninguém aguenta mais, nenhum de nós pactua. O problema é que, ao mesmo tempo, o
resultado de todos nós juntos é precisamente tudo o que aí está, na Saúde o que o Relatório do Institute of Medicine já escancarou há mais de 15 anos. Estamos
muito aquém da somatória das nossas autoimagens individuais ou corporativas. E
só tem a melhorar quem é capaz de reconhecer! Aliás, esta “capacidade” deveria ser a base do moderno movimento de segurança do paciente.
* histórias aqui relatadas não necessariamente são reais, devendo servir apenas para debates e discussões.