Antes de tudo, dedico esse post a todos aqueles profissionais que de uma forma ou de outra, imbuídos ou não da melhor das intenções, representam organizações e serviços que ostentam como bandeira de luta a necessidade de organizar de tal forma o gerenciamento do processo assistencial, que nenhum problema diagnóstico ou enfermidade possam existir dentro da organização sem que possa ser estruturado na forma de diretrizes, protocolos clínicos ou cirúrgicos, procedimentos operacionais ou qualquer outra maneira de mapeamento que pressuponha previsibilidade nos desfechos para o paciente.
É fundamental lançar esse alerta, até mesmo como parte de um movimento de esclarecimento didático. Há em todas as iniciativas de construção de processos assistenciais um dispêndio enorme de energia, custo e comprometimento das pessoas. Algumas vezes são elaborados documentos de alta precisão teórica e esmero gráfico, que se tornam obsoletos em função da falta de estrutura adequada para monitorização de sua aplicabilidade, parte mais difícil do processo, posto que a partir daí se constroem os tão fundamentais indicadores assistenciais de adequabilidade ao processo, ponto de partida para os ajustes internos da organização, quando indicados.
Outras tantas vezes essa etapa é vencida, mas uma outra ainda mais difícil se interpõe entre o desejo do gestor e o mundo real: a não assimilação, deliberada ou não, dos profissionais que desses documentos farão (ou deveriam fazer) uso. A literatura atual de relato de experiências no Brasil e em outros países está mostrando que isso está se tornando mais comum do que se imagina.
Tal fenômeno teoricamente contraria o bom senso, uma vez que diretrizes e protocolos são, ou deveriam ser, elementos para guiar práticas de profissionais acerca de uma doença ou procedimento em uma organização específica, utilizando a melhor evidência clínica da literatura mundial consagrada, mas respeitando suas limitações, seu arsenal tecnológico, seu corpo clínico, sua história, valores, missão e cenário político e relacional com parceiros e demais entes reguladores.
Então, o que deve explicar isso?
Existem muitos analistas que buscam explicações para isso. Vou arriscar um palpite: não está na hora de revermos o processo assistencial em saúde dentro de uma ótica menos processual? A quem interessa, aliás, o seguimento estrito de normas e decisões num contexto de precarização das profissões relacionadas, principalmente a médica, a estagnação dos investimentos nos serviços de saúde públicos, a ditadura imposta pelas restrições das mais diversas naturezas impostas por tetos orçamentários baixos ou pela necessidade de contenção não disfarçada de despesas, principalmente pelos entes privados? Seria somente o reflexo de nosso pseudo-crescimento perante as economias mundiais, em que se anuncia um crescimento do número de usuários na medicina suplementar, quando na verdade permanecemos nos mesmos 25% da população de ?felizardos? (e desses, em torno de 7% são apenas para planos odontológicos)?
Até o advento da industrialização no início do século passado, o método artesanal de produção fabril sempre esteve intimamente relacionado à experiência e ao saber do artesão. Em geral, nenhuma peça era estritamente igual à outra. A chegada das modernas formas de produção, consolidadas por Taylor e Ford nos Estados Unidos, impingiu um duro golpe no conhecimento individual do agora operário: o processo de fabricação em geral estava padronizado, o mais importante era o processo e seu gerenciamento, incluindo-se aí a análise de perdas, re-trabalho, qualidade do produto final, etc. O indivíduo passa a ser um componente a mais no cenário fabril, e não o seu elemento diferenciador.
Todas as vezes que ouço comentários acerca da não adesão de profissionais a processos de gerenciamento assistencial eu me lembro desse momento em nossa história. Temos que admitir que uma parte significativa de nossos gestores, muitos deles não médicos, acreditam piamente que um processo inserido no contexto assistencial pode ser gerenciado a ponto de secundarizar o talento, a experiência, o toque pessoal, a empatia e todos os outros fatores impossíveis de serem mensurados, quanto mais gerenciados.
O gerenciamento do processo assistencial teve início relativamente recente em nosso meio, depois de bem implantada nos Estados Unidos desde a década de 70 do século passado. A motivação, obviamente, era a contenção de custos num ambiente de gastos desenfreados a acriteriosos (e que ainda persistem por lá). No nosso meio, as motivações são as mesmas. E é extremamente louvável, dentro dos princípios de qualidade e segurança dos usuários, que estratégias para a melhor utilização dos recursos, cada vez mais escassos, sejam usados com racionalidade. A nação agradece, pois teoricamente uma consequência imediata, dentre tantas outras, é justamente facilitar o acesso de quem antes não pôde fazer uso de serviços de qualidade.
E é aí que entra o alerta: qualquer gerenciamento assistencial tem limites muito bem definidos. Mas nem sempre visíveis. A tal ponto que em alguns locais o seguimento estrito de normas e recomendações desenhadas para servir de roteiro na abordagem de pacientes se tornaram exceção, e não regra. E o mais interessante, sem prejuízos detectáveis nos custos assistenciais ou na segurança do usuário do sistema. Pacientes são quase sempre únicos em uma grande parte das situações. Nos hospitais, verdadeiros sorvedouros de recursos, incontáveis fatores não controláveis os tornam bem diferentes daquele paciente que serviu como padrão para a construção de uma diretriz. Ele tem múltiplas morbidades, apresenta condições psicológicas sociais inesperadas e tem um histórico de vida tão peculiar que é impossível às vezes saber o que abordar primeiro.
Processos de qualidade voltados para a segurança dos usuários são necessários e inquestionáveis. Mas não devemos restringir conceitos de Governança Clínica a esse aspecto apenas. A valorização do conhecimento tácito dos profissionais, sem desconsiderar o conhecimento explícito, tão obstinadamente disseminado e exigido, pode ser sim um diferencial para as organizações. E apesar de ser um fator intangível, apresenta resultados consistentes e de forte repercussão na comunidade aonde a organização se insere.
Um caminho atraente, em vista do exposto, talvez seja focar a atenção no conhecimento personalizado naqueles que podem fazer a diferença dentro de suas organizações, e esquecer um pouco o último ?guideline?. Uma liderança médica experiente, agregadora e carismática é fundamental, apesar de cara e escassa. Um olhar atento na forma como as pessoas atuam e em seus resultados, desde que dentro de parâmetros universalmente aceitos de atuação, pode servir para identificar pessoas comprometidas com o paciente e com a organização, e que servirão para irradiar boas práticas aos demais.
Afinal, numa guerra quem traça a estratégia é o comandante. Mas quem leva ao resultado é o desempenho de quem está no ?front?.