Na mitologia grega, Dâmocles ao sentar no trono e perceber uma espada suspensa voltada diretamente para sua cabeça, presa somente por um fio de rabo de cavalo, declinou do reinado de um dia que lhe havia sido oferecido pelo Rei Dionísio de Siracusa.

Não são raras as vezes em que a pergunta que intitula este artigo é feita aos médicos quando há prescrição de transfusão sanguínea e o paciente ou o responsável a recusa, sob o pretexto de que o tratamento vai de encontro à sua religiosidade e nesta hora, inevitavelmente, a espada em questão suspende-se sobre a cabeça do médico.

Se é certo que o paciente tem o direito de ser informado e consentir com o tratamento, também é certo que o tratamento indicado tem por fundamento a confiança do médico na melhor terapêutica disponível para o diagnóstico que se apresenta.

Este profissional de saúde, ao escolher a transfusão, o fez com a certeza de oferecer o tratamento mais adequado e possível para o paciente junto à instituição de saúde que o recebe, ou seja, se o médico optou pela transfusão sanguínea, o fez por acreditar ser aquela a melhor solução, ou mesmo, a única disponível naquela unidade hospitalar.

Assim é que, mesmo sendo correto dizer que a opção do paciente deve ser respeitada, a recusa se transforma em verdadeiro constrangimento para o médico. “E agora, o que é que eu faço?”, alguns certamente pensam.

Fala-se muito que ao paciente deve ser dado o direito de escolha, dando-se como exemplo a pessoa que opta pela operação espiritual à intervenção cirúrgica.

Ocorre que é justamente este tipo de escolha que cabe ao paciente. A escolha do tratamento, de acordo com a convicção de quem o executa!

Não se pode compreender, entretanto, que se busque certo tipo de procedimento onde o mesmo não é feito. Buscar um hospital em que os médicos e o próprio hospital utilizam a transfusão sanguínea como meio de cura e querer outro tipo de tratamento é o mesmo que se optar pela intervenção espiritual e esperar uma intervenção convencional.

Buscar o médico e impedi-lo de exercer o seu ofício é mais constrangedor do que receber o tratamento que é prescrito e não é aceito pelo paciente.

O médico não foi em busca do paciente para lhe prestar seus serviços, pelo contrário, o paciente foi quem procurou a instituição de saúde, ou, na pior das hipóteses, para lá foi levado em situação de urgência ou emergência.

Tal recusa se dá mais normalmente pelos seguidores da fé cristã denominados Testemunhas de Jeová.

Tem-se conhecimento que referidas pessoas costumam até fornecer, quando de suas internações junto às instituições de saúde, declaração isentando tanto a instituição, quanto o médico por quaisquer resultados advindos de tratamentos alternativos, tendo em vista que se recusam a receber a transfusão sanguínea.

Não se olvida que atualmente há diversas técnicas alternativas à transfusão, como hemodiluição ou a recuperação sanguínea intra-operatória.

Ocorre que referidas técnicas não são universais, pelo que, não são encontradas em todas as unidades de saúde, além do fato de não poderem ser administradas para todos os pacientes, considerando-se, ainda, os riscos inerentes a qualquer tipo de transfusão, seja a convencional ou as autólogas. Assim, a prescrição deve ser criteriosa com um balanço de seus reais benefícios.

O Conselho Federal de Medicina já se posicionou no sentido de que havendo recusa na permissão, o médico deverá respeitar a vontade do paciente ou responsável somente nos casos em que não haja iminente perigo de vida, pois, nestes casos, o médico deverá praticar a transfusão de sangue independentemente do consentimento do paciente (Resolução CFM nº 1021/80).

No mesmo diapasão, o posicionamento do fórum: “Transfusão de Sangue: os Conflitos entre a Ciência e a Religião” organizado pelo Comitê de Bioética do HCor, Cremesp, OAB de São Paulo e a Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH) que definiu o seguinte entendimento: “ao médico é vedada a não realização do procedimento de Transfusão de Sangue em pacientes que se negam a receber sangue por motivos religiosos, em situações de urgência e emergência, que representem perigo iminente de morte ao paciente, em conformidade com os dispositivos legais supracitados, ressalvando-se apenas os casos em que se apresente ordem judicial expressa e específica, em favor do paciente, impeditiva da realização do procedimento de transfusão de sangue”.

Como exemplo das consequências da omissão, quando existente o risco de morte, cita-se o recurso nº 993.99.085354-0, do TJSP, cuja decisão foi a seguinte: “Homicídio. Sentença de pronúncia. Pais que, segundo consta, impedem ou retardam transfusão de sangue na filha, por motivos religiosos, provocando-lhe a morte. Médico da mesma religião que, também segundo consta, os incentiva a tanto e ameaça de processo os médicos que assistiam a paciente, caso realizem a intervenção sem o consentimento dos pais. Ciência da inevitável consequência do não tratamento. Circunstâncias, que, em tese, caracterizam o dolo eventual, e não podem deixar de ser levadas
à apreciação do júri. Recursos não providos”.

Por fim, pensando no conflito entre os direitos constitucionais fundamentais da inviolabilidade do direito à vida e à liberdade de consciência e crença, nossa opinião é de que deve prevalecer o primeiro por melhor se adequar ao princípio da dignidade do homem, como valor que informa todo o ordenamento jurídico.

Gabriel Mesquita Rodrigues Filho, advogado com 15 anos de experiência em diversos segmentos do Direito. Sócio-fundador da Mesquita & Dornelas Advogados voltada para o direito sanitário. Já dirigiu o departamento jurídico de uma tradicional operadora de planos de saúde em São Paulo e participou do Fórum Permanente do Judiciário para a Saúde promovido pelo Conselho Nacional de Justiça.

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