Há uma série de estigmas negativos carregados por Compras em todas as companhias. Mas é certo que um dos mais difundidos é o que relaciona o departamento à busca de produtos ou fornecedores de qualidade duvidosa simplesmente porque seus preços são menores.
É fácil entender as razões disso. Se pudéssemos dividir o mercado consumidor dos serviços de Compras em duas partes teríamos de um lado nossas áreas pares, geralmente formadas por pessoas que têm um contato mais próximo com os consumidores finais.
Para estes, somos um setor de apoio com um papel bastante claro nas roldanas da companhia: não deixar a produção parar, obter contato com fornecedores, quando necessário, e não interferir no resultado final oferecido ao cliente. Em resumo, como para um árbitro de futebol não ser lembrado em uma partida denota um bom trabalho, quanto menos Compras aparecer.
A outra parte de nossos clientes internos é formada por áreas que nos compreendem como fundamentais na saúde financeira da empresa. Afinal, nossa atuação interfere nos preços de venda dos produtos, na rentabilidade do negócio, na afinidade dos gastos com o orçamento anual, na contenção de despesas de custo fixo, no saldo de capital disponível para investimentos e na adequação da relação com o mercado fornecedor em prol dos objetivos traçados.
Dado o perfil estratégico exigido por este público é bastante comum que as atividades sejam monitoradas de perto por diretores e/ou acionistas.
Complementando este cenário, uma parcela significativa dos compradores desenvolve uma preferência natural em se relacionar com fatos concretos (números, processos, procedimentos, etc.) tendo ênfase menor nas habilidades de comunicação relacional e, um pouco também, com a satisfação do resultado do processo. Não estou impondo que somos anti-sociais natos ou míopes corporativos, mas gestores de dinheiro tendem a sentirem-se mais confortáveis com o número 1 do que com um determinado feeling ou percepção. Ao menos até que este se revele em uma unidade de medida.
O estigma dos mercenários surge da gravitação que escolhemos neste ambiente.
Muitos chamarão de gerenciamento de prioridades, outros de respeito hierárquico e alguns simplesmente de juízo. Mas há uma predisposição dos profissionais de Compras a enfatizar seus esforços nos ganhos financeiros diretos, seja por serem estes os que são vistos com destaque pelo alto escalão, seja porque são os que nos trazem naturalmente maior prazer por se ajustarem ao perfil objetivo, realista e muito cartesiano da classe.
Não há nenhum problema em manter uma visão lógica e restritiva quanto ao uso dos recursos da empresa, dos quais, aliás, somos guardiões. O pecado é compreendermos este como um único ponto de partida e chegada nas nossas decisões.
Casos Mattel e Dell
Em 2007, a Mattel, fabricante das bonecas Barbie, teve um prejuízo de US$ 30 milhões, além de uma queda de 9% no valor de suas ações na Bolsa de Nova York por conta de um recall necessário para prevenir danos à saúde de crianças que manuseavam brinquedos confeccionados com níveis excessivos de chumbo. Na época, o vice-presidente sênior da companhia, Jim Walter, justificou a falha alegando que um fabricante chinês terceirizado não cumpriu com os procedimentos mundiais de teste e seleção de tintas.
Um ano antes, a multinacional Dell recolheu mais de quatro milhões de baterias de computadores portáteis vendidos, sob o risco de que explodissem durante o uso dos aparelhos. Prejuízo de US$ 300 milhões, felizmente (ou não) compartilhados com a fabricante do acessório, além de uma mancha indelével na confiança depositada pelos consumidores.
De danos menores aos mais graves, como os relatados acima, a importância da escolha correta de fornecedores e insumos não deve se limitar a uma avaliação simples dos preços oferecidos. As grandes empresas investem há anos em processos de certificação de produtos e fabricantes de matéria-prima buscando minimizar os riscos dos fatores externos na qualidade e segurança oferecida aos seus clientes e funcionários. Não só por conta do respeito em si que uma relação de confiança na marca pressupõe, mas também porque este custo pode ser compreendido como um investimento. Afinal, para a Dell e Mattel, quanto teria sido gasto em procedimentos mais rigorosos de seleção de fontes de abastecimento (ou na garantia de cumprimento das já existentes) quando comparamos estes recursos aos prejuízos decorridos dos recalls?
Perante estes aspectos me parece absurdo que Compras assuma a substituição ou desenvolvimento de alternativas padronizadas sem o apoio de setores co-responsáveis pelo resultado final. Não se trata de covardia ou omissão, mas sim de uma questão de responsabilidade, capacitação e respeito pela opinião técnica de quem convive com nossa escolha.
Estejam certos de que o berço da imagem mercenária é a falta de um padrão aplicado de pesquisa e desenvolvimento de alternativas que considerem, antes de tudo, a opinião dos mais afetados por nossas decisões: aqueles que usam os produtos e serviços que contratamos.
*Ronie Oliveira Reyes é gerente de compras do Hospital Nossa Senhora de Lourdes
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