A Medicina no Brasil passa por uma crise que se encaixa em uma máxima de Maquiavel, o qual, em sua obra ?O Príncipe?, afirma que um líder deve buscar o apoio de seu povo: ?deve-se cometer todas as crueldades de uma só vez, para não ter que voltar a elas todos os dias. Os benefícios devem ser oferecidos gradualmente, para que possam ser melhor apreciados.?
Um dos focos desta crise foi a recente a Medida Provisória nº. 621 de 13 de julho de 2013, que apresentou o ?Programa Mais Médicos?. Uma medida de emergência nascida já sob o esteio de críticas, em especial das instituições representativas dos médicos. Quase de forma simultânea, após anos à espera da aprovação de um texto definitivo sobre o ato médico, os médicos assistem perplexos aos dez vetos da Presidente, segundo os quais, se confirmados pelo Congresso, o diagnóstico de doenças não será ato privativo do médico. A indignação da classe culminou na saída dos representantes do Conselho Federal de Medicina de todas as comissões do Governo Federal em que havia representantes.
Não fosse o bastante, há que se lembrar que continua o braço de ferro dos médicos contra as operadoras de planos de saúde. Médicos não são tratados com dignidade seja por seus honorários, seja pelas condições precárias em que precisam praticar seu ofício. Ainda lhes resta um pouco o respeito dos pacientes.
Nesse contexto, o recente anúncio do Governo acerca do convite para que médicos estrangeiros exerçam a Medicina nos rincões do país teve um grande impacto na classe médica. Questiona-se se não se está oferecendo à saúde pública dos Estados e Municípios mais pobres apenas um paliativo, com profissionais que acabarão por ?lavar as mãos? ao constatarem emergências superlotadas; postos de saúde ? que deveriam prover a primeira triagem dos enfermos ? com prédios e equipamentos sucateados; filas para consultas e cirurgias para procedimentos que não admitem espera; hospitais sem leitos disponíveis; além de doentes largados em corredores; pacientes desassistidos e vidas abreviadas.
Segundo o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no ano de 2012, o Governo anunciou corte de R$ 55 bilhões no orçamento, sendo a saúde a pasta mais atingida (perdeu R$ 5,47 bilhões), mesmo sendo uma das áreas prioritárias. De outro lado, consta no site do mesmo Governo (Portal da Saúde-SUS) que o Ministério da Saúde está investindo R$ 15 bilhões até 2014 para melhorar a infraestrutura dos serviços de saúde sendo que R$ 7,4 bilhões já estão execução e R$ 5,5 bilhões são recursos novos, além de R$ 2 bilhões para 14 hospitais universitários. Desses recursos novos, R$ 4,9 bilhões são destinados à construção de 6 mil UBS e reforma e ampliação de 11,8 mil unidades, e R$ 630 milhões para construção de 225 UPAs. Parece paradoxal que haja cortes no orçamento da Saúde e se anuncie valores consideráveis para investimentos em infraestrutura, unidades básicas de saúde, urgência e emergência.
O fato é a imprensa continua apresentando hospitais públicos abandonados, sem manutenção e cenas que chocam. Com a MP, considerada urgente, o Governo passa a percepção de que não há programas importantes em andamento, estes sim que precisam ter a atenção imediata do Estado, inclusive para que não se precise de ?tantos? médicos. Um programa preventivo voltado para toda a sociedade deveria ser o centro de uma política mais ampla de saúde que não seja aquela voltada apenas para a doença; mas antes é preciso cuidar dos doentes.
Como explicar surtos de doenças como dengue, malária, leishmanioses em certas regiões do país?
Interessante dizer que as chamadas doenças crônicas não transmissíveis (doenças cardiovasculares, hipertensão, transtornos neurológicos, câncer, doenças respiratórias e outras) são responsáveis por 72% das mortes no país, número elevado. Se a reforma que se pretende na saúde, tivesse como objetivo cuidar dos fatores de risco, por certo se voltaria também para a nutrição e atividade física. Nesse sentido, seria importante então aumentar o contingente no atendimento primário de forma a haver equipes multidisciplinares formadas por professores de educação física, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos. Haverá profissionais para a periferia do país ou será necessário chamar estrangeiros?
O grande receio dos profissionais de saúde, em especial os médicos, é o de que um plano do Governo Federal aparentemente transitório se perpetue. Que os médicos estrangeiros, após o tempo de necessário trabalho em determinada região, se espalhem para os grandes centros, sem serem avaliados inclusive. Que não sejam corrigidos os problemas de falta de estrutura e de equipamentos nas unidades de atendimento. O receio é o de que daqui a três anos, nova importação se faça necessária.
Na Inglaterra, país citado nas razões para aprovação da MP 621 como um exemplo, não há filas de espera. O cuidado é tão grande com os pacientes que o Estado pode oferecer uma nova casa para uma paciente que, por motivos de saúde, necessite. O trabalho de prevenção é exercido de forma eficaz. Equipamentos novos e bem cuidados, médicos com remuneração variável, conforme o tempo de exercício da profissão. Valorização dos profissionais, orgulhosos de seu ofício. O investimento em saúde pública pode chegar a 14% do PIB.
No Brasil, no Estado mais rico do país (São Paulo), são canceladas cirurgias por falta de equipamentos e remédios, o que se dirá de outros lugares? Faltam remédios para tratamento de hipertensão, insuficiência cardíaca e antibióticos, agulhas, esparadrapos, coletores de secreção, eles não são urgentes? A remuneração baixa dos profissionais de saúde levam médicos a trabalharem em mais de uma instituição, com plantões em diversos horários, isso é qualidade profissional? Um investimento de 4% do PIB é suficiente para financiar as ações necessárias? Não, é necessário que esse número seja de pelo menos 10%.
É com essa indignação que os médicos despertam e constroem um movimento para tentar uma reforma verdadeira no sistema de saúde. O urso, após tanto tempo hibernando, acordou.
*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde, é presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde e vice-presidente na Associação Latino Americana de Direito Médico.
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