De acordo com o jornal britânico The Guardian, os problemas do Boeing 787 Dreamliner são uma lição sobre a terceirização/fragmentação da produção e ?relações muito amigáveis entre reguladores e regulados?. Tenho escrito sobre isto na Saúde em algumas de minhas postagens. Na aviação historicamente aprendem com os erros. Se eu estiver certo em 5% do que penso, temos com o que aprender.
Em relação a terceirização, “o reitor da Universidade Pace, em Nova York, Amar Gupta, ressaltou ao The Guardian a complexidade de se terceirizar a produção de um avião. Bill Dugovich, diretor de Comunicações da Speea, o sindicato dos profissionais da indústria aeroespacional nos EUA, disse ao jornal que o grupo já havia manifestado à Boeing suas preocupações. ?Geralmente, a terceirização estica a cadeia de fornecimento, gera problemas culturais e é muito difícil de coordenar?, afirmou”.
Na Saúde, é terceirização da gestão, das atividades-fim, da mão de obra das atividades-fim. Até entre os médicos ocorre, vide caso recente e amplamente noticiado de transferência de plantões de neurocirurgião contratado para neurocirurgião “boia-fria” (termo que aprendi na própria cidade do fato, popularizado por se tratar de prática comum). Novas etapas da assistência hospitalar estão sendo terceirizadas, como o atendimento de intercorrências clínicas não previsíveis (onde inequivocamente pode representar algo bom, ainda assim existindo alternativas) e previsíveis (onde há muita controversa, e espaço para o bom e para o ruim) – leia mais sobre isto em Times de Resposta Rápida: Requinte, Recurso ou Retrocesso?.
Segundo a matéria sobre o Boeing, houve fragmentação do processo de produção e problemas decorrentes disto: “30% das peças do Dreamliner são feitas fora dos Estados Unidos. Os fabricantes estão em Japão, Coreia do Sul, Itália, França, Alemanha, Reino Unido e Suécia. ?Cada empresa fez o que foi pedido, mas houve uma falha na hora de juntar tudo, integrar os sistemas?, disse Gupta ao The Guardian”.
Na Saúde, a fragmentação da assistência vem crescendo de forma desorganizada. E erros nas trocas de informações e de comunicação estão entre os mais comuns e de maiores consequências para os pacientes. Segundo a Joint Commission, problemas de comunicação são os mais comumente encontrados nas análises de causa-raiz dos erros mais sérios vinculados à assistência à saúde.
Fragmentação é o contrário de continuidade, coisas difíceis de definir e mensurar. Por isso, entre outros motivos, pesquisas neste campo são tão escassas e complexas. Continuidade pode ser desmembrada em (opto por manter as expressões em inglês):
Provider continuity (da relação entre o paciente e um (01) profissional da saúde ao longo de tempo);
Information continuity (disponibilidade e uso adequado de informações prévias durante atendimento atual);
Management continuity (adequada entrega do cuidado por diferentes profissionais).
Continuidade, do ponto de vista de responsável maior pelo cuidado, reflete, tradicionalmente, o binômio (01) médico – paciente. Contemporaneamente, frente à complexidade da medicina moderna, fala-se em coordenador(es) do cuidado, de preferência um, no máximo dois e se comunicando bem (vide modelo de Medicina Hospitalar, ref 1). Não parece a melhor alternativa focar apenas nas duas últimas, gerando um espécie de aberração de ?fordismo? na Saúde. A principal característica do modelo de Henry Ford foi a introdução das linhas de montagem, na qual cada operário ficava em um determinado local realizando uma tarefa específica, enquanto o produto fabricado se deslocava pelo interior da fábrica em uma espécie de esteira. O funcionário da fábrica se especializava em apenas uma etapa do processo produtivo e repetia a mesma atividade durante toda a jornada de trabalho, fato que provocava uma alienação física e psicológica nos operários, que não tinham noção do processo produtivo do automóvel. Vejamos o que tem acontecido na Saúde, mais especificamente no setor hospitalar: surgimento e organização de setores semi-independentes responsáveis por etapas específicas do cuidado (UTI’s, Emergências) – algo já testado, e que se mostrou necessário e importante. Mas também o aparecimento de diversas soluções questionáveis, como o cuidado baseado em plantões onde cada dia trabalha um profissional diferente; “linha de montagem” na assistência ao parto, com enfermeiro responsável pelo parto “normal” e médico por aquele que complica (sendo o paciente um só e na mesma estrutura); contratação de profissionais clínicos (mais baratos do que anestesistas) para dar quase que exclusivamente altas de unidades de recuperação cirúrgica, atendendo regulamentação específica (tive a oportunidade de ocupar temporariamente uma oportunidade de trabalho assim, onde a tomada de decisão para a maioria das situações ficava a cargo da equipe assistente (cirurgião/anestesista), muito via contato telefônico com a enfermeira do setor, restando para o clínico transcrições); contratação de equipes inteiras apenas para cumprir “portarias”, como tantas Equipes Multiprofissionais de Terapia Nutricional (EMTNs) Brasil afora, trabalhando absolutamente desconectadas dos profissionais da linha de frente e do coordenador médico do cuidado de pacientes individuais.
Existem evidências consistentes de que provider continuity (como variável independente) está associada com satisfação do paciente e do profissional, seja no modelo tradicional, seja no de Medicina Hospitalar (ref 2). Evidências de impacto positivo em desfechos duros e custos são menos consistentes, mas também existem. Parece ser mais importante para populações vulneráveis, como, por exemplo, idosos e portadores de múltiplas comorbidades. Por outro lado, a efetividade de ferramentas para melhorar information continuity e, principalmente, management continuity ainda é, na maioria dos casos, bastante discutível, por mais que estejamos falando de iniciativas de qualidade super interessantes e que merecem toda nossa atenção, costumeiramente estimuladas por órgãos reguladores ou acreditadores (não sendo isto mais uma crítica minha as acreditadoras, já que eu próprio estimulo algumas. Embora pouco as use – o que, isto sim, está no cerne da crítica feita).
O Wall Street Journal afirmou que, ao liberar o 787 para voar, a Federal Aviation Administration (FAA, órgão regulador do setor aéreo nos EUA) confiou em dados produzidos pela própria Boeing, que apontavam que o sistema de bateria de íon-lítio – jamais usado em uma aeronave grande – era à prova de erro. A FAA, segundo o The Guardian, normalmente se baseia em dados das próprias fabricantes de aviões. Sobre relações muito amigáveis entre reguladores e regulados na Saúde, abordei recentemente aqui.