Comovido com o empenho de um amigo que pediu para eu fazer uma avaliação domiciliar em um paciente carente com câncer, dispus-me a fazer o atendimento sem ônus. A ruela só permitia a passagem de um carro, com três andares de casas construídas de cada lado. Um filho me aguardava na frente da casa e me acompanhou ao local onde estava o paciente. Subi por uma escada de construção e encontrei o paciente deitado no chão, somente com um colchão de palha e coberto com uma manta. O estado insalubre do local e subnutricional da pessoa eram desoladores. Munido de estetoscópio e boa vontade, o máximo que pude fazer foi recomendar hospitalização. Remover o paciente pela escada que passei era impossível, e o único sentido em hidratá-lo e alimentá-lo, assim como dar analgesia adequada, era para oferecer alguma dignidade na morte iminente. O paciente ficou em casa e faleceu alguns dias depois. Passaram-se 10 anos desse episódio e pouca coisa mudou na saúde da população carente. Seguimos sem leitos hospitalares suficientes, ambulâncias equipadas, equipes interdisciplinares de atendimento paliativo ou uma política de saúde que modifique efetivamente esse cenário. É importante deixar claro para a população que a percepção de que é melhor ter algum médico do que nada é um erro. Ter um médico sem estrutura cientificamente consistente é menos do que o mínimo recomendado. É obrigação de todos, portanto, pleitear por estrutura correta. Alegada falta de recurso é um argumento difícil de entender quando existem vultosas somas gastas em outros setores. Existe, sim, é falta de prioridade e uma gestão insuficiente. A imprensa informa amplamente o cenário de penúria do sistema público de saúde e a população tem, cada vez mais, acesso a informação ágil e precisa. Mesmo assim, o rumo do debate é distorcido e medidas práticas são escassas. Corremos o risco de nos tornarmos as pessoas mais bem informadas da história a morrer por não saber nada.

(artigo publicado no Jornal do Comércio de 26/08/2013)