O momento é de crescimento e as instituições de Saúde anunciam planos de investimento e expansão. As indústrias multinacionais abrem suas fábricas ou compram empresas no País, o que facilita a fabricação e a regulamentação dos produtos. A situação só não é tão boa assim para as fabricantes brasileiras porque muitas vezes, os equipamentos importados saem mais baratos do que os nacionais e tal situação coloca em perigo a competitividade da indústria brasileira.
Dentre os principais desafios apontados pela indústria nacional estão a falta de incentivo do governo para inovação do setor, os altos tributos e as desvantagens em compras públicas, onde muitas vezes o valor do produto se sobressai à qualidade. Do outro lado, o governo apresenta algumas alternativas como a margem de preferência, a política do Complexo Industrial da Saúde, mas reconhece que ainda há muito a se fazer.
A discussão sobre as dificuldades da indústria médica brasileira, os entraves que as empresas enfrentam para inovar, a regulamentação no setor e o desenvolvimento dessas companhias foram discutidos no último IT Mídia Debates, que reuniu representantes das empresas Fanem e Ortosíntese, da Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (Abimo) e do Ministério da Saúde. Convidada a participar do encontro e comentar as questões sob o ponto de vista regulatório, a Anvisa não compareceu por motivos de agenda. Veja os principais trechos do debate, a seguir.
Inovação
A conexão ineficiente entre as necessidades do mercado e a inovação da indústria faz com que eles andem em total descompasso. A partir da década de 90 com a abertura do mercado às empresas estrangeiras, a indústria nacional ficou enfraquecida e perdeu competitividade. Neste cenário, as companhias ainda não conseguiram se consolidar diante dos desafios apresentados no mercado. Esse cenário impacta diretamente à inovação, pois diante de uma situação de sobrevivência como inovar? Algumas empresas conseguem vencer esses desafios e ir adiante, mas a maioria ainda está focada no pagamento das contas.
O descompasso também se reflete na academia, pois o grande número de ideias inovadoras dentro de universidades se sobressai diante do incentivo e condições das empresas, que assumem a falta de gerenciamento capaz de trazer essas inovações para dentro da companhia ? fato que as fariam dar importantes saltos.
?Tem muita coisa arquivada nas gavetas desses centros de pesquisas que interessam à indústria. O que precisa acontecer no Brasil é aquilo que já se vê no exterior, onde cerca de 90% dos pesquisadores são subsidiados por empresas. Aqui ocorre justamente o contrário?, avalia o diretor executivo da Fanem, Djalma Luiz Rodrigues.
Acompanhar a volatilidade do que acontece mundo afora e das necessidades nacionais é um passo importante para inovar. Com essa visão, Rodrigues venceu um desafio e segue para o segundo ano da fábrica da empresa na Índia.
Há 51 anos no comando da Fanem, o executivo conta orgulhosamente ter dado passos importantes em trabalho conjunto com universidades como, por exemplo, a exploração de uma patente com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). ?Isso é demonstração de que quando existe o objeto inovador e capacidade da indústria, o relacionamento é certeiro. Pena que isso não esta sendo aproveitado na plenitude?, lamenta.
O fato é que cada vez mais a indústria recorre à inovação como alternativa na busca por respostas para suas demandas de negócio. Porém, não com a mesma sorte da empresa de Rodrigues, a maioria das corporações nacionais sofre com a morosidade da agência reguladora, com a liberação de patentes e com barreiras governamentais, como em compras públicas.
?Não existe a mínima chance de uma empresa pequena ser inovadora, porque ela tem que vender, receber e pagar suas despesas para sobreviver. No cenário brasileiro se, por acaso, uma companhia na área médica tiver sorte de lançar um produto inovador, sua primeira dificuldade logo virá ao participar de uma concorrência no governo?, alega o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (Abimo), Paulo Henrique Fraccaro, referindo-se às grandes compras governamentais, onde o preço é mais valorizado do que qualidade. ?E o preço nunca será inovador?, completa o executivo, que sentiu a enorme dificuldade de uma empresa ser inovadora ao presidir por mais de 30 anos uma multinacional.
Para Fraccaro, quando se fala em inovação a palavra da ordem é economia globalizada. ?Não tem que inovar só no mercado nacional, porque a qualquer momento chega uma empresa de fora com um produto muito mais inovador. Mais do que isso, para ser inovador tem de ter o planejamento estratégico de sempre estar à frente, o que não é muito comum no Brasil?, considera. ?Esse tema é de alta complexidade e dificuldade de implantar nas empresas que estão tentando sobreviver no cenário brasileiro?.
Esta guerra da sobrevivência tem sido vivenciada pela Ortosíntese, empresa produtora de implantes ortopédicos, que há mais de 10 anos sofre com o congelamento da tabela de preços do Ministério da Saúde. Após tantas lutas, uma pequena majoração foi conquistada nessa lista onde estão baseados os preços da companhia. ?Nós conseguimos sobreviver investindo incessantemente em tecnologia de processos?, conta o diretor técnico da empresa, Carlos Nakamura.
O pouco já conquistado é suficiente para animar a empresa, que aposta em uma melhora nos ganhos para que ela possa se capitalizar. ?Vejo na companhia e também dentro do segmento que representamos que trabalhar com preço achatado por muitos anos só nos impediu de trazer recursos para a empresa para que possamos inovar. E sabemos que esse segmento é extremamente competitivo, onde todos os dias nascem produtos inovadores para as diversas necessidades da sociedade?, analisa.
Outro problema enfrentado pela indústria é o setor regulatório, que dificulta a inovação de produtos almejada pelas empresas que buscam alcançar novos mercados. A grande demanda represada pela Anvisa engessa a parte dos registros tão sonhados. ?Ao mesmo tempo em que preciso lançar novos produtos, eu não consigo. Estamos competindo no mercado com mercadorias conhecidas há muito tempo, e se eu não tiver produtos novos fica complicado competir?, desabafa Nakamura. ?Se eu mal consigo registrar produto aqui no Brasil, se quer vou conseguir competir lá fora?.
O coordenador geral de equipamentos e materiais de uso em saúde do departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (DECIIS/SCTIE), Paulo Henrique Dantas Antonino, afirma que o governo trata com importância ações para alavancar a curva de aprendizagem nacional, para que a indústria possa buscar competitividade no mercado. ?Mas não é fácil. Como inserir a saúde nesse contexto econômico e produtivo é um desafio da nossa secretaria?, pontua.
Uma das forças tarefas citadas por Antonino para transferir a inovação em algo produtivo para a sociedade é o plano Brasil Maior, política industrial, tecnológica e de comércio exterior do governo Dilma Rousseff. Dentro deste plano está inserido o Complexo Industrial da Saúde e o executivo garante que o grande mote é justamente como gerar conhecimento para as empresas.
? Temos desenvolvido ações para criar musculatura para dar oportunidade à indústria nacional para que ela possa competir com empresas já consolidadas e com players internacionais?, afirma.
Em relação às compras públicas, Antonino diz ser uma sistêmica. Ele explica que o comprador faz especificações da mercadoria de forma que consiga atingir seu escopo inovador e, consequentemente, a indústria vai à luta pelo menor preço, desde que atenda a necessidade do procedimento médico. ?Hoje o ministério faz compras centralizadas. Elas acontecem em municípios e Estados. É claro que o diálogo é importante para criar ações que criem critérios e qualifiquem fornecedores que podem vender para determinada unidade de saúde?, diz.
De acordo com ele, é possível também ter mecanismos de inovação na gestão para reduzir problemas em compras públicas. ?Estamos num esforço intenso para que o modelo de saúde não seja empurrado pela tecnologia, e sim, para buscar a inovação demandada pelo mercado?.
O caminho para inovar, em sua opinião, é fazer justamente o contrário do que ele tem presenciado: ?Não tenho que primeiro estar com o bolso cheio e ser competitivo para depois inovar, tem que fazer o oposto. Se o que a indústria quer é gerar business, então é preciso aproximar retas que no passado eram paralelas e que hoje conseguem ter uma convergência com produtos criados em centros universitários e por meio de conhecimento transferido?, sugere.
Desenvolvimento
O desenvolvimento da indústria nacional de saúde diante das empresas multinacionais e a necessidade de atualização e modernização das instituições é uma questão abrangente. A área hospitalar, por exemplo, está em uma fase de expansão, porém a maioria é hospitais beneficentes e privados.
Assim, surge a inclusão social e, junto com ela, a discórdia. A Abimo tenta fortemente provar para o governo que essa inserção que tem acontecido nos últimos anos abrange apenas uma parte da economia, e não a área da saúde como um todo.
?Os hospitais públicos não estão sendo ainda preparados para atender essa demanda da inclusão social. No entanto, a indústria brasileira é capaz de atender essa possível demanda dos hospitais. Aliás, as indústrias aqui instaladas podem atender quase 100% dessas necessidades, só que ainda não está sendo concretizado nenhum plano que possa fazer com que as empresas consigam ter planejamento estratégico para esse atendimento?, analisa o presidente da associação, Paulo Fraccaro.
Para o executivo, falta também um investimento maciço por parte do governo na rede pública para evitar caos de filas, macas nos corredores, entre outros. Com esse viés, a Abimo se prepara para levar ao governo um plano de como implementar um PAC para a saúde. ?Existe abertura e caminho para isso. As indústrias estão preparadas, mas não sabem ainda quando isso poderá acontecer?, avalia.
Outro ponto de conflito é a isonomia tributária, onde os hospitais beneficentes são isentos de tributos, o que tende a fazer com que hospitais como Sírio-Libanês e Albert Einstein na preparação para a expansão que já vem ocorrendo optem pelo produto importado, segundo Fraccaro. ?Afinal, essas instituições podem trazer um produto equivalente ao da Fanem sem pagar nenhum tributo?.
Por se falar na Fanem, o seu diretor executivo, Djalma Rodrigues, ao concordar com a posição da Abimo acrescenta que quando o assunto é a preparação da indústria para suprir o mercado, é preciso, primeiramente, diferenciar a conta de custeio e de investimento já que, em sua visão, não tem indicador claro para as indústrias.
Para Rodrigues, o sistema de pregão é um exemplo que abre uma concorrência onde o nacional vai brigar com os internacionais. Para se destacar, as empresas optam por comprimir preço e, no final, vencem por uma venda repleta de prejuízo. ?Quando a companhia recebe o pedido, vem um total de dez peças. Isso dilapida o capital das empresas e, como consequência, ela terá menos dinheiro para inovar, contratar, expandir. É um ciclo vicioso. O registro de preço faz com que a empresa se iluda com a demanda que depois não vem.
Isso é muito grave?. Para piorar, o diretor da Fanem indica as dificuldades que serão enfrentadas na ponta para ter aprovação do recebimento, que atrasa o pagamento das indústrias nacionais. ?As companhias seriam mais fortes se tivessem uma organização mais apropriada?, conclui.
Mesmo com tantas dificuldades no cenário de atualização e modernização, uma empresa ou outra se destacou no mercado. Esse é o caso da Ortosíntese, que superou barreiras e passou de estrutura pequena a um parque industrial.
O crescimento da companhia se deve ao investimento em tecnologia de processamento, embora Carlos Nakamura, diretor técnico da empresa, assuma que há distância entre a academia e as empresas. ?Hoje a indústria carece de uma série de tecnologias e conhecimento, principalmente em tecnologia de processamento. Vejo as universidades estudando projetos de produtos de 30 anos atrás, que talvez naquela época fizessem a diferença, mas hoje não?, relata.
O representante do governo, Paulo Antonio, do DECIIS/SCTIE, rebate as críticas, ao afirmar que números comprovam que o setor teve um crescimento significativo ao longo dos anos.
?Fazemos um esforço coletivo, governo e indústria, para o setor crescer e ele vem crescendo. Por arranjos econômicos, às vezes em determinado ano se compra mais ou se compra menos. Mas a demanda continua, e temos que de forma coordenada articular esse sistema de inovação e produtivo para que possamos acompanhar essa necessidade com produtos mais eficientes e mais baratos, assim a indústria pode competir.
Claro que umas vão crescer e outras desaparecer, isso é o mercado?, diz.
Dentro do arranjo de pregão, Antonino se apega no fato do modelo existir há um bom tempo. ?Acho mais fácil montar uma pirâmide no Egito do que montar uma licitação pública?, desabafa. ?Mas alguma coisa está fora da curva, o comprador não pode pedir apenas dez peças se antes havia pedido por 500?, frisa o executivo, com certo tom de estranheza.
De acordo com ele, as solicitações de compras como estas serão pedidas para análise do governo. ?O modelo de compra pública é um desastre, mas é um modelo vigente?, conclui.
Regulação
Os impostos tributados em produtos importados, principalmente em casos de mercadorias que não são produzidas localmente nem mesmo possuem similares nacionais, são queixas constantes da indústria nacional, que enfrenta diariamente os impactos da regulamentação do setor quando o assunto é competitividade.
Esse é exatamente o caso da Ortosíntese, empresa produtora de implantes ortopédicos, que sempre necessita importar componentes não fabricados no Brasil. ?Acho justo que tenha incidência de impostos tributados, desde que o produto seja fabricado nacionalmente. Mas muito me estranha ter de efetuar este tipo de pagamento por produtos não fabricados aqui como, por exemplo, insumos e matérias primas para implantes ortopédicos. Existem outros insumos que somos obrigados a trazer de fora, e que têm um custo caro. Como se não bastasse, quando chega à alfândega temos de pagar tributos?, conta Carlos Nakamura, diretor técnico da empresa.
Para o executivo, essas são questões que deveriam ser revistas. ?Para sermos competitivos não deveríamos ser taxados. Isso encarece muito a matéria prima que compramos?, diz Nakamura, presente na indústria há 23 anos.
Com outra experiência, Djalma Rodrigues, da Fanem, inaugurou uma filial na Índia em 2011 e desde então percebe que sob o aspecto de tributação não há o que comparar, já que as leis são diferentes. ?Se for olhar por esse aspecto é por isso que a Índia está ?nadando de braçadas?. Nossa legislação tributária é muito complexa. Sem falar que não dá pra conceber de que produto para a saúde tem que ser mais barato nos tributos, porque o maior comprador é o próprio governo, ou seja, ele vai comprar o próprio imposto que criou?.
Mais do que apenas tributos, a indústria está preocupada com a certificação dos produtos brasileireiros, visando a exportação. Rodrigues elogia e reconhece que o sistema regulatório nacional é apreciado e serve de exemplo para outros países. ?Entretanto, as nações maiores estão vendo que os emergentes estão crescendo, então a norma básica está sendo exigida em curto prazo nos outros países, e ainda não temos capacitação para liberar em curto prazo os brasileiros?, considera.
Em sua visão, o governo deveria apoiar os laboratórios universitários para que o futuro da exportação brasileira não seja jogado de lado.
Sem se alongar, Paulo Henrique Antonino garante: ?O governo já vem investindo na criação de laboratórios com essa finalidade , entrando com fluxo de recurso com o Inmetro para atender essa demanda. Tenho carteira com aproximadamente 140 milhões de projetos, uma boa parte para adequar laboratórios. Quanto aos demais pontos, não posso responder pela Anvisa?, declara.