Governo não faz sua parte no SUS, mas ANS faz operadoras gastarem centenas de milhões com seus beneficiários para testar COVID-19
Fonte: Geografia Econômica da Saúde no Brasil
Ao mesmo tempo que divulgou o Boletim COVID-19 que causou enorme discórdia ao sinalizar que a pandemia ainda não trouxe consequências para as operadoras, a ANS incluiu testes para COVID-19 no Rol, impondo para as operadoras um elevado custo e uma elevada despesa, que evidentemente não faziam parte do planejamento orçamentário delas !
Começando pelo comentário sobre o Boletim COVID-19 publicado pela ANS que foi, no mínimo, inoportuno:
· Todos do meio sabem que a sinistralidade medida nas contas de hoje se refere a, no mínimo, 2 meses e meio atrás;
· Entre haver o procedimento de alta complexidade (no caso a internação), a alta ser realizada, a conta ser fechada, a conta ser auditada, a conta ser remetida, a conta ser processada pela operadora, e o custo ser reconhecido, são necessários em média 65 dias;
· Como a pandemia começou a tomar corpo a partir da segunda quinzena de abril, só vamos começar a ter dados para entender o impacto financeiro no mês de julho, “e olha lá”;
· No Boletim a ANS até comenta o viés do fato de estar lidando com dados de caixa e não de competência, mas “em letrinhas bem miúdas”, como aquelas cláusulas que são colocadas em contratos para não serem lidas !
Para a maioria absoluta dos gestores que me relaciono profissionalmente (e não são poucos) o relatório foi inoportuno ao lembrar que existem investidores no segmento, que necessitam de informações sólidas para tomar decisões que colocam em jogo a sustentabilidade de empresas, empregos de pessoas …
Em relação ao impacto financeiro da inclusão no Rol, tanto o custo como a despesa são muito difíceis de estimar, afinal estamos lidando com algo completamente novo, apesar de alguns ainda não terem entendido:
· Não foi uma inclusão de item no Rol que afeta uma pequena parcela de beneficiários como um exame específico para cardiologia, ortopedia … foi a inclusão de algo que permeia toda a massa de beneficiários da saúde suplementar;
· Mas mesmo fazendo cálculos muito conservadores chegamos em valores muito preocupantes para a sustentabilidade das operadoras;
· As simulações aqui representam o mínimo, do mínimo, do mínimo que as operadoras estão sujeitas a arcar !
Cerca de 47 milhões de beneficiários de planos vão fazer pelo menos 1 destes novos testes:
· Ou quando internarem em função da doença;
· Ou para saber se já foram infectados com o vírus;
· Todos, algum dia, vão necessitar de “um certificado de infecção” para que a sua vida volte ao normal !
Muitos farão mais de uma vez:
· Fez … “deu negativo”;
· Vai ter que fazer novamente depois, ou para saber se já foi infectado e não apresentou sintomas, ou para saber que ainda não foi infectado entrando em um ciclo de vários testes até a confirmação que seu risco passou
Então, para ser conservador, vamos estimar que apenas 20% dos beneficiários vão repetir o exame, ou seja, cerca de 56,4 milhões de exames !
Se cada teste custar R$ 15,00 (conservador novamente), são R$ 846 milhões.
Mesmo para o bilionário sistema de financiamento da saude suplementar do Brasil, é um dinheiro que vai fazer muita falta no sistema, porque não havia previsão deste gasto quando as planilhas de estimativa de sinistralidade foram compostas para este ano.
Este é o custo mínimo estimado.
Mas existe uma despesa que não é desprezível:
· Cerca de 650 operadoras terão que aditar seus contratos com serviços de saúde para incluir estes exames;
· Como são exames novos existe aí uma negociação comercial.
O processo de negociar, credenciar, aditar, ajustar sistemas, produzir instruções para as equipes operacionais para acatar, auditar, autorizar … :
· Envolve funcionários administrativos, analistas e gestores (supervisores e/ou gerentes e/ou diretoria) … não se brinca com isso em empresa alguma;
· Para ser conservador, todos estes processos comerciais e burocráticos de todas as pessoas envolvidas vão consumir no mínimo 30 horas;
· Considerando um custo de R$ 50 por hora, um valor bem baixo considerando as esferas de maior hierarquia, chegamos em R$ 1.500 por contrato.
Em se tratando de exames laboratoriais que ocorrem tanto em ambiente ambulatorial como em internações, tem operadoras muito grandes que terão que fazer isso para milhares contratos … milhares mesmo:
· Nas operadoras muito pequenas, uns 20 contratos;
· Então, sendo conservador, pode-se estimar uma média de 30 contratos por operadora.
Não perdendo a conta:
· 650 operadoras;
· 30 contratos;
· R$ 1.500,00 por contrato.
Estamos falando de R$ 29.250.000, ou seja, quase R$ 30 milhões de despesa, havendo 1 ou 57 milhões de exames a serem realizados:
· Parece pouco comparado com o custo assistencial que é quase 30 vezes maior;
· Mas quem atua no segmento sabe que somente isso já é uma quebra de orçamento importante para o sistema de financiamento.
Aqui nem estamos comentando sobre a despesa da “avalanche de judicializações e recursos de glosas” que vêm em função disso:
· Negativas de coberturas por elevado número de prescrições para um mesmo paciente;
· Inserção do exame em protocolo de atendimento não reconhecido como correto …
É mais um evento que reforça a imagem de que a ANS não avalia adequadamente as implicações das suas resoluções nos momentos mais críticos:
· Quando um tema envolve aspectos assistenciais a agência, que tem estrutura quase que totalmente desenvolvida para aspectos processuais, se distancia das necessidades das operadoras, serviços de saúde, fornecedores e todos os outros atores da saude suplementar;
· Na verdade reforça o questionamento sobre o papel da ANS no sistema de saúde … a ANS foi concebida como órgão regulador de um “sistema de financiamento”, ficando a margem de questões relacionadas à saúde populacional … definindo “uma cerca que divide” a saúde das pessoas entre pública e privada, como se isso fosse possível;
· Por isso não criticamos quem trabalha na agencia, que dentro das definições da existência dela realizam seu trabalho da melhor maneira possível … o que se questiona é o papel da agência;
· Por isso quase não ouvimos falar dela como instituição de apoio para o momento mais crítico que a área da saúde profissionalizada jamais passou … jamais imaginou passar … vemos relatórios inoportunos, pesquisas sobre processos e questões operacionais de troca de informações, atualização de indicadores de qualidade que não contribuem para a crise …;
· Vemos operadoras e serviços de saúde na saúde suplementar “sangrando” para captar dados uns dos outros para construir painéis epidemiológicos do impacto do COVID-19 na saúde suplementar … cada um tabulando seus números em relatórios imbatíveis (não batem uns com os outros) … trabalhando no escuro !
Em um episódio sem precedentes como é o caso da pandemia, que não poderia ter sido previsto em nenhum modelo de negócios na saude suplementar, “jogar este custo e esta despesa no colo das operadoras” como se fosse culpa ou responsabilidade delas é muito discutível.
No mínimo uma atitude intempestiva, em um momento em que as operadoras estão inseguras em relação às questões de sustentabilidade financeira … não poderia haver paradoxo maior:
· O SUS não realiza a quantidade de testes que deveria na população, alegando que não existia dotação orçamentária nem insumos disponíveis no mercado … uma obrigação que o governo apresenta dezenas de razões para não cumprir;
· Mas as operadoras vão ter que fazer nos beneficiários, por uma imposição de uma agência do governo … infelizmente já podemos prever as manchetes de penalidades para as operadoras que não cumprirem a obrigação que o governo não cumpre e não é penalizado !