Dois pastores conversaram à noite toda sobre a existência ou não de Deus. Após longas horas, concluíram que Ele não existia. No dia seguinte, o primeiro procurou o segundo e o encontrou no jardim ajoelhado fazendo suas orações matinais. Surpreso, perguntou: “depois de horas para concluir que Deus não existe, o que você está fazendo aí orando?” O segundo, retrucou: “e o que isto tem a ver com Deus?”.

Essa velha piada, que ‘ilustra como o benefício pessoal pode sublimar o benefício sistêmico’, serve para contextualizar a entrada de um novo modelo de IA nas cadeias de Saúde. Quando uma boa parte da comunidade médica já parecia aceitar os LLMs, surge um novo protagonista dentro da relação médico-paciente: a “IA Agêntica”. Não se trata de mais um Assistente Conversacional em IA (GenAI), mas de um Agente que “não depende de supervisão humana constante”. São sistemas neurais que processam e compreendem grandes volumes de dados em tempo real, adaptando-se rapidamente a novas informações médicas e contextos sintomatológicos. Além disso, podem corrigir e redesenhar sozinhos procedimentos que se mostrem vulneráveis a novas circunstâncias.

Assim, ao ver seu companheiro médico utilizando uma IA Agêntica, o colega poderia perguntar: “Já tínhamos concordado que essas máquinas não substituirão médicos, o que você está fazendo aí trabalhando com ela?” A resposta do colega seria ligeira: “E o que isto tem a ver com Medicina?”.

O Agentic AI recebeu o atributo de “self-optimizing”, ou seja, são otimizados automaticamente para decidir e executar tarefas em tempo real. Entre as funções específicas, ele pode, por exemplo, monitorar o paciente (remota ou presencialmente) concluindo pelos seus sinais vitais qual inconformidade procedimental ou medicamentosa está em curso. Pode, ao mesmo tempo, e sem ninguém lhe solicitar, comparar os dados e o histórico clínico com milhares de casos similares que referenciem determinadas ações. Assim, os sistemas Agênticos exibem autonomia, adaptabilidade, intencionalidade e retenção de memória. Ao contrário de uma aplicação tradicional (software), que segue regras fixas, esses modelos aprendem com seu ambiente e se ajustam para perseguir os objetivos.

Todos os autômatos, robôs e criaturas inteligentes dos filmes, ou das séries de ficção, como o C-3PO, Jarvis, Wally, Hall, Bender, Samantha (do “HER”), ou a famosa Rose dos “Jetsons”, não ficavam sentados esperando para receber o próximo prompt. Eles simplesmente pensavam, agiam e decidiam o que fazer. Não estamos ainda tropeçando em robôs pelas ruas, ou cruzando com eles nos hospitais, mas isso é só uma questão de tempo. Ao contrário de “chatbots convencionais”, tipo ChatGPT, que exigem comandos humanos, os Agênticos podem agir de forma autônoma quando lhe damos um objetivo. Ele usa um LLM para entender o que precisa ser feito, em seguida cria uma lista hierárquica de tarefas prioritárias. Depois, procura informações em bases de dados sugeridas, ‘aprendendo’ à medida que avança. Ou seja, melhora sua estratégia na proporção em que progride. Nesse sentido, ele executará suas tarefas quantas vezes forem necessárias até atingir o objetivo fixado. Carros autônomos são o exemplo mais simples para entender as IAs Agênticas: os veículos autônomos da Waymo, por exemplo, usam navegação agêntica para se locomover em ambientes complexos, tomando decisões em tempo real e se adaptando às condições de tráfego (sem intervenção humana).

O Gartner, que estuda as tendências tecnológicas com enorme pragmatismo, nomeou a IA Agêntica como a “tendência número um” que moldará o futuro das atividades empresariais em 2025 (segundo a empresa, até 2028, 33% dos aplicativos de software corporativo incorporarão IA Agêntica; e pelo menos 15% das decisões diárias no local de trabalho serão tomadas de forma independente pelos agênticos). Na realidade, esses modelos levam as GenAIs (LLMs) ao próximo nível, criando fluxos de trabalho capazes de tomar decisões.

A IA Generativa está entrando no alvorecer da ‘agentificação’, quando os sistemas evoluem de tarefas isoladas para máquinas especializadas, interconectadas e independentes da intervenção humana. Com base nisso, a biosfera de semicondutores (Nvidia, por exemplo) está abrindo mais espaço para a indústria de software, que, no fundo está fazendo “barba, cabelo e bigode” com os LLMs. É o caso, por exemplo, das aplicações Agentforce, lançadas em setembro/2024 pela Salesforce, que permitem a criação e personalização de Agentes Autônomos. Não é só um “produto” isolado, como Sales Cloud ou Service Cloud. Ele reúne várias soluções da empresa em um pacote customizado às necessidades de quem trabalha na linha de frente do atendimento. O “Agentic AI” da plataforma Agentforce é uma aplicação capaz de tomar decisões, automatizar tarefas e oferecer recomendações de forma cada vez mais inteligente e independente dos humanos.

Na realidade, um ‘agentic’ une: (1) a versatilidade e a flexibilidade dos LLMs; (2) a precisão do que há de melhor em engenharia de software; e (3) a arquitetura de machine learning. Trata-se de um cruzamento algorítmico que pode aprender com o comportamento do usuário, aperfeiçoando-se ao longo do tempo — o que o pensador Rousseau (1712-1778) descreveu como “perfectibilité”em sua obra “Discurso sobre a Desigualdade” (“…la faculté de se perfectionner face aux circonstances est une distinction de l’espèce”). Ele se encantaria com as Agênticas

O caminho agêntico é irreversível, marcando uma nova era na Automação. No relatório “UiPath 2025 Agentic AI Report”, baseado em pesquisa com mais de 250 executivos de TI dos EUA (empresas com receita superior a US$ 1 bilhão), mostra que 37% deles já usam as IAs Agênticas e 93% demonstram extremo ou elevado interesse em explorá-las. O escopo da oferta dessas soluções será múltiplo. Empresas como Agent.AI, por exemplo, já oferecem seus agênticos como serviço (SaaS), ou seja, o cliente não se preocupa em instalar, manter ou atualizar a infraestrutura de software. A plataforma cuida de tudo em ambiente de Nuvem. Alguém precisa, por exemplo, de um Assistente de Saúde para Doenças Autoimunes e acessa a plataforma. Se a empresa já o dispuser em “prateleira”, oferece-o com suporte, direcionando as ações da ferramenta ao indivíduo. O Agêntico pode automatizar tarefas, rastrear sintomas, prover serviços personalizados e até encorajar emocionalmente o usuário (por exemplo, AutoCare AI – Assistente de Saúde Autoimune).Os clientes pagam uma taxa de assinatura (mensal ou anual), sendo que o preço pode variar conforme o volume utilizado, os recursos disponíveis e o nível de suporte necessário.

Outras empresas, como a Adept.ai, constroem ‘modelos de linguagem agênticos’ por demanda, denominados LAMs (Grandes Modelos de Ação). Ao contrário dos LLMs, que geram principalmente conteúdo, os LAMs são otimizados para executar tarefas, permitindo-lhes tomar decisões em tempo real com base em comandos específicos. O ACT-1 da Adept, por exemplo, não só atende às solicitações do usuário, como também funciona como uma rede neural treinada para se integrar a qualquer programa, site, aplicativo da web ou API. Seus algoritmos analisam informações por meio dos pixels da tela e, na sequência, executam ações especificadas pelo usuário em um navegador. Assim, o ACT-1 é também um agente-intermediário entre pessoa + computador, podendo, por exemplo, se integrar ao Google Chrome, visualizando suas páginas/web e interagindo com elas.  

A canadenseCohere lançou em 2025 oNorth”, uma plataforma agêntica que permite às empresas “criarem agentes em diferentes funções de negócios”, tendo como core a garantia de que dados confidenciais sejam protegidos e não vazem, tornando a aplicação “adequada a setores regulamentados, onde não se pode arriscar com os dados proprietários” (como na Saúde). A LangChain, outro exemplo, se tornou sinônimo de “automação de fluxo de trabalho” no mundo das IAs. Seu framework (“orquestração para fluxos de trabalho agênticos”) tem um bordão de marketing expressivo: “Fique no assento do motorista. Crie copilotos que escrevam os primeiros rascunhos para revisão, ajam em seu nome ou esperem por sua aprovação antes da execução”.

Isso sem falar nas empresas tradicionais, que já mostram sua musculatura nos agênticos, como o Microsoft AutoGen (ou o Magentic-One, um multiagente da Microsoft para tarefas complexas); ou oVertex AI Gen AI (Google); oClaude 3 (Anthropic); ou ainda a famíliaAWS Agents, parte da plataforma AWS Bedrock. Todas oferecem uma enorme “base de lançamento espacial” para IAs Agênticas voltadas aresolver problemas de forma autônoma e automática. Já a Productive Edge se especializou em desenvolver agênticas para a Saúde. Seu texto “CIOs devem ser ousados ​​para obter vantagem com a IA Agentic na área da Saúde” corrobora sobre como esses modelos farão a diferença na Saúde e como seus ‘benefícios são capazes de levar toda a empresa a outro nível de maturidade e eficiência’ (transformação digital).

Todas essas companhias têm olhos gordos para o bioma Saúde. Seria mais justo chamarmos o modelo agêntico de A+A (Automação com Autonomia). Na Saúde, o brilho é mais fácil de entender: um Agentic AI aprende e melhora sua interação com dados clínicos, pacientes e seus ambientes, determinando como uma crise sanitária individual pode ser bem tratada com o mínimo envolvimento médico. Como resultado, ações preliminares no primary care (acesso ao histórico clínico), por exemplo, são executadas com eficiência máxima, liberando recursos médicos para tarefas de maior valor (ações suplementares). No fundo, um dos maiores problemas dos Sistemas de Saúde é legitimar ações e não só operar informações. Podemos ter todos os dados médicos, mas se eles não ‘geram ações’, somos uma biblioteca e não uma indústria de serviços.

Muitas mudanças corporativas ocorrerão em função da escalada dos Agentes. Uma delas, talvez a mais emergente, é a transformação do setor de RH (Recursos Humanos) em um setor de RNH (Recursos Não-Humanos). Conforme os Agentes de IA se integrem aos fluxos diários de trabalho, tornam-se os novos funcionários digitais. Se hoje a força de trabalho (humana) carece de integração, treinamento e avaliação de desempenho, os Agentes precisarão de supervisão semelhante. Exigirão uma espécie de ‘zeladoria das capacidades digitais’. Lembre-se da jornada: com os agênticos, a produtividade aumenta, fazendo com que as pessoas se tornem ‘supervisoras de IA’ em vez de executoras de tarefas. Os papéis também mudam. Se os agênticos democratizam as habilidades técnicas, por outro lado, ampliam o papel de cada funcionário. Considerando isso, os agênticos pressionarão a produtividade, fazendo com que a colaboração se torne crítica. Nesse sentido, o RNH (que continuará a ser também RH) passa a ser crucial na solução de conflitos e na mediação entre pessoas, e entre pessoas e máquinas.

É pouco provável que as áreas de Tecnologia de Informação (TICs) assumam esse papel de orquestração. TI sabe afinar instrumentos, escrever partituras e proteger o maestro; no entanto, Agentes Autônomos não são só avatares virtuais, são também entidades autorizadas a tomar decisões, exigindo, portanto, regras de legitimidade, compliance e bioética. Uma IA agêntica é projetada para agir de maneira emancipada, mas sem livre-arbítrio. O termo “agêntica” deriva de “agência”, que por sua vez tem origem no latim “agentia”, que significa ação, atividade e capacidade de agir (também deriva do verbo “agere”, que significa conduzir, impulsionar, ou, aquele que age).

Ocorre que a agência humana está profundamente ligada à consciência, à intencionalidade e à experiência subjetiva. Agimos com base em desejos, crenças, intenções e uma compreensão (mesmo que limitada) de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Nossas ações são guiadas por um senso de propósito interno e pela capacidade de autorreflexão. A agência de máquina não funciona assim. Não possui consciência, intenção (no sentido humano), nem tampouco experiência subjetiva. Suas ações são baseadas em algoritmos e nas arquiteturas neurais que compuseram seu treinamento (deep learning). Elas podem simular intencionalidade para atingir objetivos pré-definidos, mas não possuem uma compreensão intrínseca do que estão fazendo ou por quê. Nessa direção, caberá ao RNH zelar, controlar e habilitar os seus “guard-rails” (mecanismos ou diretrizes que orientem e restrinjam o comportamento agêntico para rumos confiáveis, éticos e seguros).

Mas, em que gaveta vamos guardar o medo dessas “coisas” tornarem-se emancipadas, autossuficientes e insubmissas? Não há certezas sobre isso, mas talvez seja confortável pensar que ‘humanos em cargos de comando’ são demasiados antropocêntricos, imodestos e notoriamente imperialistas para deixar que os Agentes percam o controle. “Estruturas para orquestrar o trabalho da IA Agêntica estão surgindo, com boa parte delas sendo empregadas em abordagens de governança. Imagine assim: um LLM cria código de software, outro garante que ele seja seguro, um terceiro verifica as regras de estilo, um quarto otimiza o desempenho e um quinto homologa seus circuitos mais sensíveis”, explica Alan Jacobson, diretor de dados e análise da Alteryx, empresa que desenvolve aplicações de governança para IAs. No fundo, para um CEO qualquer, sua indústria está utilizando robôs colaborativos, também conhecidos como “cobots”. Para ele, aumentar a produtividade é o único elemento que interessa e qualquer “rebeldia de máquina” conflita com seus objetivos. Assim, à medida que a automação (robótica) se torna mais autônoma, a governança será cada mais severa, com estruturas de autoridade radicalmente mais duras. Pense o que faria um Elon Musk se chegasse ao trabalho e encontrasse uma rebelião de ‘teslas’ na porta da fábrica…?

As GenAIs, em geral, operam sozinhas ou em ambientes limitados. Já os Agênticos interagem com outros agentes ou com múltiplos usuários em configurações maiores e todos interconectados. O prompt, por sua vez, que nas GenAIs aciona todo o raciocínio neural, nas Agênticas será tão somente um estimulador, uma ignição que dá a partida e deixa o ‘agente’ caminhar sozinho.Na área médica, a expansão dos agentes inteligentes e autônomos será veloz: “Os setores de saúde e farmacêutico são os que mais se beneficiam dos avanços da IA. Como adotantes iniciais, essas indústrias lideram a adesão aos Agentes IA e verão provavelmente as maiores recompensas. Os AI Agentics revolucionarão a assistência médica ao gerenciar tarefas como agendamento de consultas, atendimento ao paciente, monitoramento de sinais vitais, administração de medicamentos e fornecimento de tratamento hiperpersonalizado. Isso aumentará a eficiência do serviço, reduzirá o erro humano e melhorará os resultados para o paciente, posicionando a assistência médica como pioneira em inovação orientada por IA”, explica Steven Webb, diretor de tecnologia e inovação da Capgemini, no Reino Unido.

No entanto, há ‘morros a escalar’ para implementação dos Agênticos, tais como: (1) transparência e explicabilidade: uma IA ​​explicável (XAI) deve esclarecer, à exaustão, suas decisões para obter confiança contínua. Vale lembrar que IA é falível, como médicos, e, portanto, a ‘cadeia de instâncias que a promove’ sempre será responsável por seus equívocos; (2) previsibilidade: prever o comportamento desses Agentes é difícil, sendo imperativo deixá-los sempre sob o rigor das baterias de testes aleatórios; (3) integração e interoperabilidade com sistemas legados: a compatibilidade entre aplicações computacionais pode ser o fator central para fracassos agênticos. Seria sensato, antes de implementá-los, higienizar os legados, reprogramando-os ou substituindo-os por sistemas desobstruídos. Atualmente, isso pode ser facilmente obtido pelas GenAIs disponíveis no mercado. Boas plataformas de IA-generativa podem extrair a documentação dos legados, identificar seus modelos de processo, descobrir (“deixar de cobrir”) seus manuais de usuário, podendo também capturar e analisar telas de dados. Depois elas comparam o que encontram com boas práticas de programação, recomendando e redesenhando cada processo de negócio à luz do que a empresa almeja; (4) orquestração com a base de dados: aqui mora outro grande problema. Um dos eixos mais negligenciados das empresas de Saúde está no controle de seus bancos de dados, que, quase sempre, são um cipoal de informações que misturam imprecisão, falta de gestão e baixa transparência. As agênticas são reféns de dados de alta qualidade (confiabilidade). Se a base for decrépita (do Aurélio: adjetivo que significa muito velha, caduca, sem forças, arruinada ou decaída) não espere nada das agênticas, aliás, espere muitos equívocos na tomada autônoma de decisão.

Para entender a dependência das IAs Agênticas com os Softwares Legados, basta lembrar do filme “The Good, the Bad and the Ugly” (1966), em sua pseudo-crítica aos personagens do velho ‘far-west’. Sistemas Legados de Informação (que não deixam de ser um far-west), funcionam de forma semelhante: o bom e o mau estão claros e se anulam, ou seja, há o sistema que funciona e o que não funciona, ponto. Mas o feio é aquele que aparentemente funciona, realiza tarefas e é tolerado pelo CIO (Chief Information Officer). Mas, em geral, legados feios estão repletos de gambiarras, precariedades, códigos esdrúxulos e apressados, falta de documentação, etc. Inteligência Artificial, qualquer que seja, não resiste a integração com sistemas desleixados. Muitos gestores preconizam: “vamos fazer do jeito que dá, por cima do que temos, sem perder o que já está funcionando”. Misturar IA com ‘mau-código’ e ‘dado-feio’ resultará apenas em um novo acrônimo para CIO (Career is Over).

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)