Erisictão, rei da Tessália, era um
personagem na mitologia grega que teve um estranho fim: por ser arrogante, não
prestar homenagem a nenhum deus e ignorar os apelos de Deméter, deusa da
agricultura, para que não derrubasse a sua árvore sagrada (ele a derrubou em
seguida), foi invadido em suas entranhas por Némesis (a vingança) e Limos (a
fome), por ordem desta, de forma que a partir daquele momento passaria a ter
uma fome tão intensa que, após extinguir toda a comida de seu reino e de vender
sua família para adquirir mais comida e ainda assim não saciar a sua fome,
acabou por comer a si mesmo e morrer.
Encontrei nessa história a
metáfora mais que perfeita para servir de fio condutor nessa homenagem às
avessas ao dia do médico, que ocorreu recentemente.
Devo confessar que em pelo menos
um aspecto não vejo muito que comemorar nessa data: os médicos estão infelizes
com a situação à qual a própria classe se colocou com relação à intermediação
das relações de trabalho feitas pelas operadoras de planos de saúde, que não
entregam aos profissionais o valor ao qual fazem jus pelos seus serviços. E o
pior, tais quais as ondas do mar batendo nas pedras (me perdoem a licença
poética), todos os anos reproduzem as mesmas queixas e muxoxos, sem nenhuma
conquista de impacto para a classe.
Longe de ser um comentário
panfletário, e sem esperar esgotar o assunto, não consigo deixar de refletir
acerca dessa situação tão imperfeita, e que afeta toda uma categoria
profissional nas suas mais variadas
formas de agir. E, por respingos, outras categorias, por que não dizer.
As operadoras de planos de saúde
vicejaram em nosso país em função de um hiato criado pela nossa própria
sociedade. A ordem vigente mantinha um sistema de atendimento em saúde pública
distorcido, excludente e burocrático que somente veio a se parecer com algo
mais universal e socializante com a 8ª Conferência Nacional de Saúde e o seu
filhote, o SUDS (hoje SUS). A classe média crescente, órfã de um atendimento em
saúde diferenciado, sem filas e com qualidade superior, enxergava nos planos de
saúde da época um meio de, através de uma contrapartida razoável dos seus
orçamentos, exercer seu direito de ter um padrão diferenciado de atenção à
saúde.
Naquele momento (estamos falando
na década de 70 até meados da década de 80 do século passado), os custos
envolvidos na cadeia produtiva em saúde eram muito baixos em relação aos custos
atuais, assim como os insumos voltados para tecnologias diagnósticas e
terapêuticas estavam apenas iniciando seus primeiros passos rumo à explosão de
inovações disponíveis a partir dos anos 90, e seus consequentes custos
cumulativos. Para os padrões da época, um salário pago por uma operadora de
planos de saúde, ou mesmo os valores descritos em suas tabelas de procedimentos
para pagamento de serviços, tais como as consultas, eram bastante atraentes
para os médicos.
No caminho inverso, os
profissionais dos serviços públicos tiveram um achatamento sem precedentes em
seus vencimentos, na esfera federal e estadual. Com a municipalização,
corolário básico do SUDS/SUS, os cargos de gestão ficaram por definição a serem
constituídos e remunerados de acordo com cada prefeitura dentro de um
planejamento individual, num mosaico de valores e formas de agregação confusa,
pouco clara, não regulada, e que até hoje persiste.
A transferência de
responsabilidades na assistência à saúde, tirando gradativamente esse encargo
do plano de federal, ficou cada vez mais evidente nos governos que se seguiram
à época da ditadura, provocando um distanciamento cada vez maior entre uma
obrigação constitucional de prover um serviço universal e de boa qualidade, e
os orçamentos minguados para o que deveria ser feito. Esses mesmos orçamentos
algumas vezes nunca eram aplicados em sua totalidade, em outras vezes aplicados
de forma inadequada por incapacidade gerencial ou, para ficar num vocabulário
mais moderninho, seguiam os maus caminhos. Ainda hoje o governo federal se
esquiva de assumir seus compromissos orçamentários (lembrem-se da discussão acerca
da emenda 29), deixando aos estados e municípios o ônus de serem obrigados a
manter seus gastos determinados por lei sem poderem contar com a contrapartida
da União na sua plenitude.
O ambiente para a disseminação
das empresas que comercializavam planos de saúde nunca esteve mais propício
nessa época, fazendo crescer empresas sérias e empresas oportunistas, que
lesaram muita gente inocente. E em função de uma terrível sopa de letrinhas, em
que cada empresa ditava suas regras de exclusão e de transferência de custos
para as mensalidades de usuário, surgiu a lei 9656 de 1998 para regulamentar a
atuação dos Planos de Saúde, seguida da criação da ANS Agência Nacional de
Saúde, nascida com a função primordial de tentar criar a interface apropriada
nas relações entre usuários de planos de saúde e as operadoras que vendiam os
tais planos. Até mesmo a ideologia neo-liberal da época, trabalhando na criação
de um estado mínimo, teve que se render a uma certa regulaçãozinha devido à
pressão popular e política da época.
Ocorre que de lá para cá muita
coisa mudou: mudou a pirâmide populacional do país, que passou a contar com
indivíduos cada vez mais velhos (e, consequentemente, mais propensos a
desenvolver doenças, principalmente as doenças ditas da modernidade, crônicas e
caras). Mudou também o perfil da indústria de insumos e tecnologias em saúde, a
partir de inovações (muitas delas de eficácia duvidosa) rapidamente absorvidas
pelos usuários, seus médicos ou hospitais prestadores de serviço, sempre sob a
justificativa de agregar valor à saúde das pessoas. Com o sucateamento dos
serviços públicos, mudou também o padrão de prestação de serviços em saúde, que
passou a contar com estruturas que privilegiavam cada vez mais a complexidade
do tratamento em detrimento da prevenção de doenças, numa indisfarçada maneira
de auferir lucros maiores num mercado cada vez competitivo, aproveitando a
fragilidade das estruturas de planejamento nas ações de prevenção de doenças e
gestão pública adequada. Todas essas mudanças elevaram de forma exponencial os
custos de toda a cadeia produtiva no setor, fazendo com que as operadoras de
planos de saúde passassem a ser obrigadas a ter maior controle em seus gastos e
maior atenção no comportamento de usuários e prestadores.
Desde então inúmeras estratégias
de contenção de custos por parte das operadoras de planos de saúde têm sido
tentadas na expectativa de reverter esse cenário adverso. Com índices de
sinistralidade bem próximos da faixa de inoperabilidade, não havia outra forma
de um negócio como esse sobreviver sem que algo não pudesse ser feito. Sim,
quando falo em negócio, é negócio mesmo. É uma empresa, com formas de
constituição e estatuto social diferentes entre si (seguros-saúde, auto-gestão,
cooperativas, filantropias e medicina de grupo), mas sempre negócios, ou seja,
sua existência está condicionada a um elemento fundamental que parece estar
sempre oculto: necessitam dar lucro para sobreviverem enquanto organizações e
precisam dar os retornos financeiros esperados aos seus sócios-investidores.
Não vou me estender acerca das
várias formas utilizadas para o alcance desse objetivo, mas uma forma em
especial nos remete ao tema central dessa conversa: os valores pagos pelo
trabalho ou ato médico sofreram (e ainda sofrem) um processo progressivo de
desvalorização tão grande e inconcebível que quase se paga para trabalhar hoje
nos consultórios e hospitais que atendem usuários dessas empresas.
Como já foi amplamente
demonstrado através de incontáveis estudos, os reajustes percentuais das operadoras
aos usuários sempre esteve bem acima daqueles repassados para pagamento de
honorários médicos, principalmente consultas, utilizado como
procedimento-âncora nas reivindicações. Na condição de já ter convivido por um
tempo bem grande nas entranhas de grandes operadoras, é nítido que os valores
apresentados pelas faturas hospitalares, principalmente de hospitais de alta
complexidade, têm um papel fundamental na prioridade da utilização do mísero
dinheirinho que deveria tornar os honorários mais atraentes. Não é para menos.
É consenso geral de que as contas hospitalares representam a grande chaga na
contabilidade das empresas, por onde escoa a maior parte daquilo que é
arrecadado.
Mas não é tão somente isso. No
atual estado de coisas, para que negociar com uma classe que por trás de um
discurso de unidade apresenta inúmeras dissensões? Se eu consigo minar qualquer
movimento oferecendo meia dúzia de bananas e um pacote de balas Juquinha
(lembram?) a mais nos valores da consulta para alguns grupelhos de pessoas,
para que abrir negociação coletiva? E mais, se não existe nenhuma iniciativa
legítima, orquestrada, que envolva toda a classe profissional, para que me
preocupar com um gritinho aqui e outro acolá? E o que dizer daqueles que,
privilegiando de forma acrítica somente a superutilização dos recursos
terapêuticos e diagnósticos dos quais são proprietários para ganhos pessoais
destroem qualquer sonho de atividade solidária para com seus pares, demais
colegas de profissão? E quanto às organizações prestadoras de serviços em
saúde, quase todas com orçamentos apertados, que se vêem na obrigação de
compensar déficits numa fatura cheia de gordura a ser apresentada à fonte
pagadora, no caso a operadora?
A relação dos médicos com as
empresas de planos de saúde é uma relação viciada, obscena na maior parte das
vezes e de insatisfação mútua. Não se pode conceber que numa consulta médica
habitual um profissional faça uma abordagem técnica minimamente satisfatória em
quinze minutos. Sim, quinze minutos, pois esse é o tempo estimado de consulta
nos diversos consultórios, ambulatórios e demais locais de atendimento médico. Se
paga pouco por consulta? Atendemos em escala. Quanto mais atendimentos, maior o
rendimento. O que o paciente quer? Exame básico e check-up. Nada mais. O
coitado do usuário finge que foi atendido e o profissional finge que atende…
É para isso que fomos treinados?
Não podemos deixar de reforçar a
seguinte questão: somos todos empresas, no sentido de desejar obter vantagens
competitivas. Os hospitais e similares são empresas prestadoras de serviço em
grandes proporções. As operadoras de planos de saúde são empresas que
necessitam maximizar seus lucros para justificar sua existência. O complexo
médico-industrial reúne grandes empresas, que também não fogem à necessidade de
vender cada vez mais para um público alvo com fome cada vez maior de consumo. E
nós, médicos, somos empresas também, pois num sentido mais literal precisamos
fazer com que nossa prestação de serviço gere um resultado financeiro ao final
do mês que pague as nossas contas. A diferença está que, em nosso caso, temos a
obrigação ética de entregar um valor para o paciente, temos uma obrigação de
meio para prover o melhor estado de saúde para o paciente, temos o dever moral
de sermos atenciosos, corteses e empenhados em fazer o melhor dentro da melhor
técnica e arte para o qual fomos treinados….. Mas, francamente, isso é que
acontece, de fato?
O dilema entre médicos e
operadoras não vai acabar nunca. As operadoras não vão jamais atender aos reclames
da classe na proporção esperada. Não querem, por considerar que seria um passo
inicial para levantar questionamentos futuros para outros procedimentos; e não
podem, porque ao contrário do que arrotam na mídia, mal andam com as próprias
pernas. A questão é ideológica: se eu sei as regras do jogo a mim
desfavoráveis, se eu conheço as minhas minguadas perspectivas de ganho, se eu
estou ciente da falência do sistema, e ainda assim aceito entrar como prestador
de serviço, então nada há o que reclamar. Muito mais elegante e honesto
procurar outros meios de ganhar a vida se não concordar com o jogo.
O descredenciamento coletivo para
o atendimento de consultas seria assim a melhor solução para operadoras,
médicos e usuários. Médicos poderiam, enfim, retornar a uma relação
absolutamente liberal no sentido de estabelecer seus preços, mais justos, e se
ajustar à concorrência individualmente ou em grupos. Operadoras se livrariam de
uma parcela significativa de usuários que fazem uma superutilização de seus
serviços de forma desnecessária e onerosa. A compensação pelo ressarcimento de
consultas aos usuários, com esses valores maiores, seria feita através do menor
volume de consultas que seriam pagas ao profissional pelas vias normais. Por fim, pacientes poderiam procurar
profissionais da sua escolha por reputação, conveniência ou preço, sabendo que
teriam um atendimento com padrão de qualidade somente oferecido a um paciente
particular. É tentador imaginar um cenário em que as relações entre os médicos
e seus pacientes atendidos se elevem a um patamar de dignidade há muito
esquecido.
O consolo é que se essa
consciência coletiva não despertar para essa ou qualquer outra atitude, pelo
menos ninguém vai morrer de fome (ou de comer) como nosso infeliz personagem do
início do texto.
Ou vai?