Economista formado e filósofo por vocação, Eduardo Giannetti da Fonseca está desapontado com a incapacidade do Brasil em continuar se desenvolvendo, passada a estabilidade macroeconômica e a forte inclusão social das últimas décadas. O passo seguinte seria aperfeiçoar os serviços públicos de modo geral, e, neste contexto, estaria também a saúde do País. O mineiro de Belo Horizonte e de trabalhos reconhecidos internacionalmente defende uma profunda revisão do sistema, inclusive da premissa constitucional de que a assistência à saúde seja um direito de todos e um dever do Estado. Segundo ele, para enfrentar a inversão da pirâmide etária dos próximos 20 anos, é preciso redesenhar as funções do poder público e privado. E a nova classe média, que tem mostrado sua voz ativa nas recentes manifestações, promete não mais ficar calada. Giannetti será o keynote speaker do Saúde Business Forum 2013, que acontece entre os dias 19 e 22 de setembro na Ilha de Comandatuba, Bahia. Por telefone, ele conversou com a revista FH sobre as distorções econômicas da saúde brasileira. Revista FH: já te descreveram como o filósofo do nosso tempo. Afinal, porque não cursou filosofia e se enveredou pela economia?
Eduardo Giannetti: A filosofia sempre foi uma paixão desde muito jovem, mas tinha muita apreensão em relação a minha segurança profissional e independência financeira e, por conta disso, achei prudente na época levar em conta o aconselhamento dos mais velhos e fazer uma graduação em alguma área que me desse mais condições de ascensão profissional. Realmente por vocação pessoal a minha paixão de estudioso sempre foi o campo da filosofia e da história das ideias. Depois eu descobri que a origem da economia é a filosofia. Os grandes economistas eram filósofos e a economia política era parte de uma reflexão mais ampla abrangendo vários campos do conhecimento. Ou seja, a economia e filosofia não estavam tão longes uma da outra assim, como pode parecer aos olhos contemporâneos. FH: Qual é o propósito do pensamento filosófico e qual a sua importância, inclusive para homens de negócios, gestores e empreendedores? Como pode ser aplicado na prática?
Giannetti: Indagações filosóficas fazem parte da vida desde o mundo grego. Existem algumas perguntas fundamentais: o que eu posso conhecer. Quais são as bases do conhecimento humano e que segurança eu posso ter no conhecimento produtivo que me permita acreditar em uma coisa e não em outra. E o que me levou a acreditar em algo e não em outro. Esse é o campo da epistemologia ou teoria do conhecimento. E um outro campo, que também está muito ligado aos problemas da vida, é a ética. Como viver. Quais são os valores de uma vida bem vivida. Quais são as regras de conduta que uma sociedade deve respeitar para que ela possa viver em harmonia e prosperidade, e ser criativa. Tem tanto a ética pessoal, cuja pergunta é como viver; assim como a ética cívica, que é dona da pergunta o que constitui uma boa sociedade. Em que sociedade nós desejaríamos viver se pudéssemos escolher as instituições e regras que vão pautar a ação e interação humana. FH: Ao mesmo tempo que o Brasil possui um sistema de saúde gratuito e, teoricamente, para todos, o mercado de saúde suplementar gasta mais dinheiro (4,7% do PIB) com assistência do que o Estado (3,7% do PIB). Quais são os reflexos desse desequilíbrio e um mais financiamento público seria, de fato, urgente?
Giannetti: Acho que a divisão das funções entre o setor público e o privado no campo da saúde está muito mal desenhada. O setor público está deixando de atender áreas em que ele seria imprescindível, mas ao mesmo tempo faz coisas que não precisaria no campo da medicina cara e curativa. E isso acaba sobrecarregando também o setor privado. Por outro lado, a questão da regulamentação do acesso aos planos de saúde no Brasil está mal resolvida, porque se criou tamanha rigidez nas regras de cobertura que praticamente não há espaço mais, por exemplo, para algo que deveria ser comum na vida do cidadão que são os planos de saúde individual ou familiar. Essa má divisão de tarefas e regulamentação está realmente deixando muito a desejar e prejudicando a qualidade de vida dos brasileiros. FH: Os hospitais encontram barreiras constitucionais à entrada de capital estrangeiro enquanto a prática é permitida em empresas de diagnósticos, planos de saúde, farmacêuticas e indústrias de equipamentos. Como você vê essa proibição, tendo em vista justificativas como evitar a dependência internacional, a falta de capacidade do governo em regular o setor e, até, a elitização dos estabelecimentos.
Giannetti: Discordo inteiramente da proibição da entrada de capital estrangeiro no setor hospitalar. O capital seria muito bem vindo, logicamente com uma regulamentação adequada, mas não há nenhuma justificativa econômica ou de segurança que me pareça válida e que se sustente. O Brasil precisa desse capital. FH: Aumentar a produtividade e o rendimento, evitar o desperdício, reduzir custos, otimizar o tempo, entre outros. Como aliar tais aspectos de negócio ao valor primordial da Saúde, que é cuidar com qualidade do paciente. Podemos afirmar que princípios éticos na saúde são ainda mais necessários?
Giannetti: O campo da medicina e da saúde sempre foi muito exigente do ponto de vista de ética. Existe um fenômeno chamado de assimetria de informação em que uma das partes detém o conhecimento e pode resolver usá-lo em benefício próprio, e explorar de maneira injustificada a outra parte, que está demandando o uso desse conhecimento. Por outro lado, digo que a gratuidade do serviço médico e o acesso ilimitado também levam a um enorme desperdício. O paciente tem que se dar conta que a demanda de diagnóstico, remédios e terapias possui um custo. E que precisa contribuir em alguma medida com esse custo, e sentir a realidade do que está sendo envolvido em termos de dispêndio de capital, de trabalho e de tempo. Há muito desperdício no setor e vemos o Estado arcando com custos proibitivamente altos de terapias e, ao mesmo tempo, negligenciando os serviços elementares de saúde para a grande maioria da população. O setor público tem de ser voltado fundamentalmente para a medicina preventiva e ao atendimento a grupos sociais que não têm outra maneira de financiar suas necessidades. A universalização do acesso, garantido na constituição de 88, se tornou inviável e uma farsa, porque está somente no papel. FH: Assim como em outros setores da economia, a Saúde também não possui oferta adequada à demanda crescente, apesar de assistirmos vertiginosa expansão de prestadores. Mas, por exemplo, nos últimos seis anos cerca de 11,4 milhões de pessoas passaram a ter plano de saúde, com o aumento do emprego formal e da renda. Esse problema estrutural tende a ser solucionado no longo prazo ou prevê uma drástica quebra do modelo vigente?
Giannetti: Não diria drástica quebra, mas o problema está muito longe de ser solucionado e vai se agravar. Basicamente porque a população brasileira está entrando numa etapa de envelhecimento acelerado e as demandas por serviços de saúde nessa etapa final de ciclo de vida são crescentes. O Brasil ainda está vivendo uma situação baixa de taxa de dependência, ou seja, número relativamente pequeno de crianças e idosos em relação à população que está em idade de trabalho, mas esse quadro vai se inverter ao longo dos próximos 15, 20 anos. A taxa de dependência no Brasil vai subir com muita força a partir daí, e temos algum tempo ainda para nos preparar. Eu acho que é preciso repensar fundamentalmente o papel do Estado no campo da saúde. Pensar com muito mais inteligência o desenho institucional do funcionamento do mercado de saúde. FH: Até repensar, você diria, essa premissa de saúde universal que está na constituição?
Giannetti: Eu creio que sim. Na medida em que isso não tem realidade no País, e a medicina de grupo no Brasil ainda padece de uma rigidez e ineficiência enorme na cobertura dos segmentos da população, mesmo apesar da incorporação de um maior contingente de pessoas ao mercado formal de trabalho. FH: Às recentes manifestações, se somaram os profissionais médicos e associações de classe que também exigem melhores condições de trabalho. Como você analisa essas manifestações? Temos um sistema de saúde que gera insatisfação de ponta a ponta?
Giannetti: Essas manifestações mostram uma enorme insatisfação da população com os serviços públicos. O governo se gabava da ascensão da nova classe média que alcançou mercado e ascendeu ao consumo. O que as manifestações mostraram é que essa nova classe média não se contenta apenas com ascender a itens de consumo. Ela quer ascender à cidadania, que significa: saúde, educação e transporte público. Significa dignidade humana. Também passa pelo campo das relações políticas e o escândalo que é a corrupção no Brasil. Eu não me conformo de estar em um País em que depois de um ano julgando o escândalo do mensalão rigorosamente nada aconteceu. Isso é uma vergonha nacional. Ter feito todo aquele trabalho, mobilizado tantos recursos e atenção da sociedade durante tanto tempo para que, no final, não tenhamos nenhum desdobramento prático. FH: No que diz respeito ao setor de saúde, um das respostas do Governo foi o programa Mais Médicos que, entre outras ações, prevê a contratação de profissionais estrangeiros para trabalhar nas periferias e no interior do País. Como você avalia essa resposta do governo?
Giannetti: Não acho que isso seja a solução definitiva do problema, mas é bem-vinda. Vejo com bons olhos a possibilidade de médicos estrangeiros atuarem no Brasil desde que isso seja feito com critérios. Mas acho bem-vinda na medida em que os médicos brasileiros não se mostram interessados em atender em municípios muito distantes de suas áreas de origem. Mas imaginar que isso vai dar conta do tamanho do desafio que está colocado para o setor de saúde do Brasil seria realmente injustificado. FH: Também temos assistido o desafio do governo em lidar com as alas religiosas na aprovação de políticas de saúde para a população. Os exemplos mais recentes de pressão religiosa foram em relação à obrigatoriedade do atendimento (SUS) para vítimas de violência sexual, incluindo prescrição de pílula do dia seguinte e portaria que altera as regras para a mudança de sexo. Na sua opinião, é saudável o governo ceder às pressões dessas alas, considerando o direito à saúde da população?
Giannetti: O Estado brasileiro é laico e o critério para legislar não pode ser calcado em dogma religioso de qualquer natureza e origem. A questão do planejamento familiar no Brasil é muito sério. Nós temos uma incidência enorme de gravidez precoce e esse é um problema social de primeira ordem nas populações mais desassistidas e oprimidas do País. Impedir um processo de planejamento familiar com base em dogmas religiosos não pode ser sustentado. FH: Como em qualquer área, é ideal que haja alinhamento entre os profissionais que trabalham para o mesmo fim. Entretanto, observa-se uma verdadeira guerra na saúde entre entidades médicas ? contra os vetos da presidenta Dilma Rousseff ao projeto de lei que regulamenta a medicina (Ato Médico) ? e demais profissionais da saúde, que são a favor. Como avalia esse comportamento entre os profissionais da saúde e possíveis danos à assistência?
Giannetti: Uma pena que às vezes o espírito de corpo chamado corporativismo domine o interesse público. Não acho que deva ser uma total desregulamentação, mas vejo que muitas vezes a capacidade de alguns grupos organizados em defender seus interesses prejudica o objetivo maior da melhoria do bem-estar social. Tem de ter legislação adequada, instituições e regras que impeçam que grupos invadam o interesse público com suas demandas, intervenções e capacidade de proteger seus interesses. Não conheço especificamente o que está em jogo mas, de um modo geral, a minha predileção é por maior competição e abertura. Não se pode ter controle exclusivo de uma atividade. FH: Li uma entrevista em que você relaciona a felicidade ou satisfação das pessoas com o poder aquisitivo ou conquista de bens materiais, algo que muda de acordo com o significados atribuídos por cada um e diversas variáveis envolvidas. O Butão, por exemplo, trocou o conceito de PIB para FIB (Felicidade Interna Bruta), na tentativa de mensurar a felicidade. Entretanto, o modelo econômico de muitas nações nos levou a grandes riquezas, mas também à profunda infelicidade. Afinal, a tal almejada felicidade existe; ela pode ser plena, como pode ser mensurada?
Giannetti: A felicidade é algo que cada ser humano pode alcançar. Não é algo que se conquista coletivamente para todos. O que você pode ter coletivamente é uma sociedade em que as condições sejam adequadas para que cada indivíduo persiga o seu ideal e alcance, na medida do possível, a realização dos valores que ele acredita constituírem uma melhor vida. Então, as políticas públicas têm que almejar a criação de condições para que os indivíduos estejam aptos a terem maior campo de escolha no exercício da sua liberdade e realização humana. O Brasil infelizmente deixa muito a desejar porque tem um contingente enorme de brasileiros que não se encontra devidamente capacitado para ter um campo generoso de escolhas no exercício dessa liberdade. Capacitado quero dizer em educação, saúde e em conhecimento. FH: Como paciente, qual sua análise do sistema?
Giannetti: Eu não me conformo em não conseguir ter um plano de saúde familiar a um preço condizente com as minhas necessidades. A minha grande demanda é essa. Não entendo porque é tão difícil para um cidadão brasileiro conseguir adquirir um plano de saúde individual ou familiar adequado às suas necessidades. FH: Adequado em quê?
Giannetti: Em relação a uma combinação de preço e qualidade. Praticamente não tem opções, e esse mercado desapareceu no Brasil. Tem alguma coisa profundamente errada no desenho de um sistema em que esse mercado importantíssimo não possa acontecer. QUEM
É Ph.D em Economia pela Universidade de Cambridge, formado em Economia pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) ambas da Universidade de São Paulo.
Autor de artigos e livros, entre os quais: Vícios privados, benefícios públicos? (Cia. das Letras, 1993); Beliefs in action (Cambridge University Press, 1991); Auto-engano (Cia. das Letras, 1997); Felicidade (Cia. das Letras, 2002); O Valor do Amanhã (Cia. da Letras, 2005); A Ilusão da Alma (Cia das Letras, 2010). O QUE FAZ
Atualmente é escritor e foi professor no Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo (Insper), Cambridge (Inglaterra) e FEA/USP. PRÊMIOS E TÍTULOS
2004 ? Economista do Ano Ordem dos Economistas de São Paulo
2001 ? Research Fellowship Centre for Brazilian Studies, Oxford
1995 ? Prêmio Jabuti Câmara Brasileira do Livro
1994 ? Prêmio Jabuti Câmara Brasileira do Livro
1993 ? Joan Robinson Memorial Lecturishio Faculty of Economics, Cambridge
1984 ? Research Fellowship St Jonh´s College, Cambridge.
Eduardo Giannetti: vozes das ruas clamam por bem estar
Para o economista e sociólogo, que faz a abertura do Saúde Business Forum 2013 nesta quinta-feira (19/09), setor precisa ser redesenhado
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