Rodrigo* chega ao hospital com dor abdominal. É encaminhado ao especialista em sistema gastrointestinal. Após exames, o médico constata não se tratar de tema de sua especialidade: Rodrigo está grávido. O sistema, contudo, não dá ao profissional a opção de encaminhá-lo a um ginecologista. A situação, identificada por um nome fictício, não decorre do plano imaginário.
Aqui pausamos para dizer o mínimo ao leitor menos familiarizado: pessoas trans são aquelas que se reconhecem com um gênero diferente daquele que foi atribuído no nascimento. Uma pessoa que nasce com sexo biológico feminino e se reconhece com o gênero masculino, é um homem trans. Uma pessoa que nasce com sexo biológico masculino e se reconhece com o gênero feminino, é uma mulher trans.
As questões vividas por pessoas trans, desde a mais precoce idade, são permeadas por desafios intrínsecos à sua existência, que se refletem em dimensões como acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho. Todos esses direitos são fundamentais para uma vida digna, mas um desperta atenção: o acesso à saúde.
A Constituição Federal declara, sem dar margem a dupla interpretação, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196). Garante a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais dá enfoque para as necessidades específicas da comunidade LGBTI+. Instituída em 2009, tem, entre outros objetivos, a criação de mecanismos de gestão para atingir maior equidade no SUS, com especial atenção às demandas e necessidades em saúde da população LGBTI+, e ampliar o acesso da população LGBTI+ aos serviços de saúde do SUS, garantindo às pessoas o respeito e a prestação de serviços de saúde com qualidade.
Em 2018, a Organização Mundial da Saúde retirou a transexualidade da categoria de “transtornos mentais” no Catálogo Internacional de Doenças (CID), passando a referir-se a ela como “condição relacionada à saúde sexual”, classificada como “incongruência de gênero”. Na prática, significa retirar das pessoas trans o estigma de pessoas doentes, carregado por 28 anos, e passam a integrar uma categoria que dedica atenção às suas necessidades específicas.
Desde 2018, pessoas trans podem retificar o seu nome e/ou gênero diretamente nos cartórios, sem a necessidade de acionamento judicial, acompanhamento psicológico ou cirurgia de redesignação. A modificação nos documentos, de forma simplificada, tem como intuito “permitir que a pessoa possa viver plenamente em sociedade, tal como se percebe”.
A decisão, com esse importante reconhecimento social, lançou, no entanto, as pessoas trans à Escolha de Sofia: por limitações do sistema de saúde, têm sido obrigadas a optar entre o respeito à sua identidade de gênero e o direito ao tratamento compatível com seu sexo biológico.
Isso ocorre, pois, ao retificarem o seu gênero, de acordo com a sua identidade de gênero, as pessoas trans não conseguem agendar consultas no SUS com profissionais que atendam assuntos específicos de seus sexos biológicos. O sistema do SUS não diferencia “sexo biológico” de “gênero”. Assim, ao retificar o gênero nos documentos, a pessoa trans tem duas saídas: comunicar ao SUS a alteração, mas ter seu acesso às especialidades médicas restrito (visto que o único campo presente no sistema do SUS é o de sexo), ou ficar inerte, acessando tais especialidades, sem respeito à sua identidade de gênero.
Um homem trans, como o fictício Rodrigo, não consegue marcar uma consulta com um ginecologista ou obstetra (nem mesmo estando gestante). O sistema bloqueia o acesso de um homem a uma especialidade médica vista como “feminina”. Essa não diferenciação de sexo e gênero gera impactos graves na saúde da comunidade trans, impedindo a realização de mamografia e exames preventivos ginecológicos por homens trans, ou a realização de exames de próstata por mulheres trans e travestis.
O assunto é tema de uma ação de controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Proposta em 2021, a Ação (chamada ADPF) já conta com decisão liminar do ministro Gilmar Mendes para que o Sistema Único de Saúde promova alterações em seu sistema para que as pessoas trans possam acessar as especialidades médicas de acordo com a sua identidade de gênero e seu sexo biológico.
E as perspectivas para os próximos anos são otimistas. Pela primeira vez, pessoas trans ocuparão espaços importantes no Governo Federal, possibilitando o olhar da comunidade LGBTI+ na criação de políticas públicas e articulações institucionais. Symmy Larrat será a primeira travesti a integrar o Ministério dos Direitos Humanos, liderando a Secretaria Nacional dos Direitos LGBTQIA+. No Ministério da Saúde, a travesti Alicia Kruger integrará a equipe de Políticas de Inclusão, Diversidade e Equidade. Suas presenças nesses espaços possibilitarão a construção de políticas mais amplas e diversas, atentas às necessidades de todas, todos e todes.
O fato é que as pessoas trans se encaixam em uma sociedade que não foi construída por e para elas. Dessa constatação, que parece singela, decorrem muitas das mazelas que as assolam. Um sistema de saúde exclusivamente cis-centrado (feito por e para pessoas cis) não será apto a absorver e contemplar todas as necessidades relacionadas ao acesso à saúde integral de uma pessoa trans. A participação ativa dessas pessoas na construção de políticas públicas, ouvindo as necessidades específicas e possibilitando uma mudança estrutural da situação, é sem dúvida via efetiva. Felizmente (e finalmente), parecemos estar no caminho certo.
Clara Serva, sócia na área de Empresas e Direitos Humanos de TozziniFreire Advogados Maria Paula Custódio, advogada na área de Empresas e Direitos Humanos de TozziniFreire Advogados