Não é raro que a Medicina e o Direito ofereçam, para um mesmo problema, soluções inteiramente diversas. Quando caminham, contudo, de mãos dadas, verdadeiras revoluções acontecem. Exemplo emblemático se tem na questão do acesso a medicamentos orais para o tratamento do câncer. Segunda doença que mais mata no Brasil, o câncer ocupa o incontestável primeiro lugar no que diz respeito à agressividade e ao desconforto do tratamento. A ciência médica oferece, contudo, uma preciosa alternativa: os chamados antineoplásicos orais, medicamentos de uso domiciliar que substituem a quimioterapia tradicional, oferecendo ao paciente um caminho bem menos invasivo e comprovadamente mais eficaz, como revelou, em entrevista recente, a Diretora-Executiva da ABCâncer: “Na pesquisa com pacientes de diferentes tipos de câncer, eles foram unânimes ao afirmar que os resultados são mais satisfatórios quando tratados em casa.”
Por mais evidente que tudo isso possa parecer, os usuários de planos e seguros de saúde não têm acesso garantido aos antineoplásicos orais. Economicamente, já há estudos demonstrando que seu custo não difere, de modo significativo, da quimioterapia ambulatorial. Afirma-se, na verdade, que o obstáculo seria jurídico, já que a Resolução Normativa 167, emitida pela ANS em 2007, não incluiu os antineoplásicos orais no âmbito da chamada “cobertura mínima obrigatória”. Dentre os procedimentos obrigatórios, a Resolução Normativa 167 menciona tão-somente a “quimioterapia oncológica ambulatorial”, entendida como aquela baseada na “administração de medicamentos para tratamento do câncer”, sob intervenção ou supervisão “direta” de profissionais de saúde “dentro do estabelecimento de Unidades de Saúde, tais como, hospitais, clínicas, ambulatórios e urgência e emergência”. Os antineoplásicos orais recairiam, assim, na categoria genérica da “medicação de uso oral domiciliar”, que cada operador de plano de saúde tem a faculdade (não já a obrigação) de oferecer ao consumidor.
A construção é frágil. Para os juristas, a Resolução Normativa da ANS tem peso muito menor que a legislação federal e a Constituição da República, de onde se extrai solução inteiramente diversa. Na esteira das normas constitucionais, que protegem amplamente o direito à saúde, a Lei 8.080 incluiu dentro do conceito de saúde a preocupação com o “bem-estar físico, mental e social” das pessoas e da coletividade (art. 3o). Ao regular os planos e seguros privados de assistência à saúde, a Lei 9.656 construiu um sistema de proteção aos pacientes fundado não em uma listagem “fechada” de procedimentos ou terapias, mas no tratamento “das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde” (art. 10). Vale dizer: a legislação federal assegura ao paciente o tratamento das doenças listadas pela OMS; os procedimentos e terapias que serão, a cada momento e em cada caso, empregados para tratar tais doenças variam com as descobertas da ciência e as convicções da comunidade médica, sendo inteiramente absurdo acreditar que o Direito tentaria limitá-los.
Bem vistas as coisas, o que a Resolução Normativa 167 veio acrescentar, comprometendo-se ela própria com a “integralidade de ações” de saúde (art. 4o, II), foi um Rol de Procedimentos Mínimos, que nenhuma operadora ou seguradora de saúde pode deixar de oferecer, de modo geral e irrestrito, aos seus usuários. Isso não impede, por óbvio, que as operadoras e seguradoras de saúde venham a custear, em casos concretos, mediante a adequada recomendação do médico, a utilização de outros tratamentos, em particular dos antineoplásicos orais, em substituição à desgastante quimioterapia ambulatorial. Nem impede que pacientes, munidos igualmente da adequada recomendação médica, ingressem em juízo buscando a aplicação direta e efetiva da legislação federal e da Constituição da República, para que lhes seja assegurado o acesso a tais medicamentos e a quaisquer outras tecnologias comprovadamente eficazes, sob o ponto de vista clínico, especialmente quando não se afigurem economicamente desvantajosas em relação aos procedimentos já oferecidos. Aqui, entram em jogo não apenas as disposições da legislação de saúde, mas também as normas do Código de Defesa do Consumidor, com suas inúmeras garantias ao destinatário final dos serviços de saúde.
Tudo isso deve ser lembrado no momento atual, em que a ANS discute a revisão da Resolução Normativa 167. Se é certo que a mobilização de entidades pioneiras do setor de saúde, como a ABCâncer, pode conduzir a uma expressa inclusão dos antineoplásicos orais no Rol de Procedimentos Mínimos, não se pode esquecer, mesmo em caso de solução diversa, que a aludida listagem não esgota os direitos de pacientes, usuários e consumidores. Muitos deles nem podem esperar pela mudança. A esperança de converter em realidade o sonho de tantas pessoas já atormentadas pelo câncer passa pela convergência entre a interpretação das normas jurídicas e o conhecimento médico. A chance de fazer história está depositada nas mãos daqueles profissionais que, convencidos do benefício evidente de uma terapia mais amena e mais adequada a certos casos, não hesitem em cumprir seu dever legal de assegurar o acesso à saúde, entendida não apenas como cura, mas como bem estar do paciente. Aqui, mais uma vez, Direito e Medicina caminham de mãos dadas.
* Anderson Schreiber é procurador do Estado do Rio de Janeiro
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