Imagine a seguinte situação: um paciente precisa transplantar o fígado, mas, em vez de entrar em uma longa fila de espera, recebe um órgão novinho em folha, com a mesma forma e medida do original, fabricado com suas próprias células por meio de uma impressora tridimensional. Pode parecer ficção científica, mas a parceria entre tecnologia e medicina prevê essa possibilidade para um futuro não muito distante, trazendo para a realidade fatos que antes só podiam ser vistos nas telas do cinema.

Hoje, a impressão em três dimensões (3D) – também conhecida como manufatura aditiva – tem diferentes aplicações na área médica. Já é possível criar moldes personalizados de órgãos e esqueleto para melhor planejamento, orientação e precisão em cirurgias; implantes que substituem ossos – principalmente em reconstruções de crânio e face; próteses para membros superiores e inferiores; e até vasos sanguíneos. O passo de maior expectativa é criar tecidos e órgãos por meio da bioimpressão, que utiliza células vivas como matéria-prima, no lugar de plásticos, resinas e metais.

Exemplos surpreendentes do uso da tecnologia podem ser vistos mundo afora. Em março, uma equipe de cirurgiões ingleses reconstruiu a face de Stephen Power, que teve crânio, nariz, maxilar e maçãs do rosto fraturados em um acidente de moto. A impressão 3D entrou em todas as etapas do processo: do modelo tridimensional do crânio aos implantes e parafusos de titânio. Na China, em setembro, uma tela de titânio restaurou o crânio de um paciente que ficou com a cabeça deformada após uma queda do terceiro andar de um prédio.

Ferramentas e soluções

Quando se trata de tecnologias tridimensionais aplicadas à medicina, existe uma variedade de ferramentas e soluções, de acordo com o engenheiro químico e pesquisador Jorge Vicente Lopes da Silva, chefe da Divisão de Tecnologias Tridimensionais (DT3D) do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), entidade vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e localizada em Campinas, interior de São Paulo.

Ele destaca três: imagens médicas 3D para diagnóstico e planejamento cirúrgico, que oferecem uma visão realista do problema e da anatomia do paciente; impressões 3D, capazes de transformar modelos anatômicos obtidos por imagens de tomografia computadorizada e ressonância magnética, por exemplo, em modelos físicos, que podem ser manipulados para diagnóstico, planejamento e intervenção cirúrgica de qualidade e segura; e, no meio desse caminho entre imagens médicas e modelos impressos, softwares para tratamento, segmentação e reconstrução 3D das imagens.

É aí que entra o InVesalius, software desenvolvido pelo CTI em 2001,  o primeiro livre no mundo, de código aberto, que faz integração entre imagens médicas e equipamentos de impressão 3D. Segundo Silva, por ser livre, o programa pode ser utilizado, estudado, modificado e distribuído a todos que tiverem interesse. “Isso faz com que não apenas a ferramenta, mas também o conhecimento utilizado em seu desenvolvimento sejam públicos, provendo autonomia tecnológica à rede pública de saúde, além da formação de empresas de base tecnológica dentro e fora do País”, considera.

Em parceria com o Ministério da Saúde, o CTI colabora com cerca de 500 planejamentos cirúrgicos anuais com auxílio do InVesalius. No total, já foram atendidos mais de 4.000 casos cirúrgicos de 120 hospitais de todo o Brasil. “Trabalhamos a partir da demanda do cirurgião, principalmente, em casos de tumores na região da coluna e bucomaxilofaciais, deformidades congênitas ou adquiridas por acidentes”, conta. “O investimento vale a pena: a qualidade da cirurgia aumenta e as despesas totais caem, pois reduz o tempo do procedimento e o uso das instalações, já que a recuperação do paciente é mais rápida”, acrescenta o pesquisador.

Hoje, o software brasileiro é distribuído em dez idiomas para 15 mil usuários de mais de 100 países nas plataformas Windows, Linux e Mac-OS.

Próteses e implantes customizados

A personalização de próteses e implantes tem sido bastante explorada no exterior, com vários casos bem-sucedidos. Em janeiro, o Centro Médico Universitário de Utrecht, na Holanda, realizou a primeira cirurgia de troca da parte superior do crânio de uma paciente por uma prótese plástica criada especialmente para ela em impressão 3D. A mulher de 22 anos sofria de uma doença rara que engrossava o crânio de forma anormal. No caso dela, o crânio tinha 5 centímetros de espessura, quando o normal seria 1,5 centímetro.

Aqui no Brasil, embora a tecnologia esteja disponível, não há regulamentação que permita o uso de implantes personalizados. E, para experimentar a técnica, é preciso enfrentar a burocracia e obter uma autorização especial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

No entanto, alguns passos promissores já estão sendo dados. Com base em um modelo da África do Sul, uma prótese de mão mecânica criada em impressora 3D está em fase de teste por meio de uma parceria entre a Engenharia Biomédica da Universidade Federal do ABC (UFABC) e o Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo (IOT-HC). Feita de termoplástico, fios de nylon e elásticos, bastante resistente e leve, a prótese tem um custo de R$ 400 – valor que deve cair consideravelmente com o uso de uma impressora 3D de baixo custo criada por um professor da própria UFABC.

Um clique

Com o objetivo de distribuir conhecimento para produção de próteses infantis de baixo custo a partir da impressão 3D, a ONG E-nabling the future (ou E-nable) conta com uma rede mundial de voluntários que dão uma “mãozinha” a quem precisa. A organização disponibiliza em sua plataforma on-line modelos detalhados de próteses para download. Utilizando poucos recursos, as próteses são funcionais e divertidas – sempre inspiradas em super-heróis.

O estudante de engenharia mecânica Marcelo Botelho é um dos engajados com a causa. Ele usou o tutorial do site para construir uma prótese para um menino de 10 anos, feita de plástico, elástico, espuma, velcro e linha de pesca, com um custo de R$ 40. Botelho montou em casa sua impressora 3D, com peças encomendadas do exterior, por R$ 1 mil.

Biofabricação

A produção de tecidos e órgãos em máquinas de impressão 3D específicas é a evolução mais esperada. Para o chefe do DT3D do CTI, o tema ainda é distante da realidade, mas avança fortemente no mundo com soluções pontuais, como microtecidos, que serão a base para grandes soluções.

O Instituto de Medicina Regenerativa da Universidade Wake Forest, nos Estados Unidos, por exemplo, desenvolveu um protótipo de rim impresso com células e um biomaterial próprio para fixá-las. A Organovo, primeira empresa a fabricar bioimpressoras, já imprimiu protótipos de tecido do fígado que reproduzem a composição e arquitetura naturais. Cientistas das universidades de Sydney, Harvard e Stanford e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts fabricaram vasos sanguíneos. A equipe imprimiu um molde em três dimensões de vasos sanguíneos e aplicou nas cavidades células endoteliais.

A estimativa do governo dos Estados Unidos é que essa tecnologia esteja em uso em larga escala até 2030, já imprimindo órgãos complexos, como rim, coração e pulmão. Será?

O que já foi feito por aí

  1. Anthony Atala, da Universidade Wake Forest, na Carolina do Norte, EUA, recriou em laboratório a bexiga de sete pessoas portadoras de um grave defeito congênito. Atala retirou células da própria bexiga dos voluntários e injetou num molde biodegradável feito numa impressora 3D. Depois, implantou o órgão de volta nos pacientes. Sim, funcionou. O próximo passo é imprimir um rim – a parte de fora já está pronta.
  2. Na Bélgica uma mandíbula de titânio foi implantada numa paciente de 83 anos, que voltou a respirar, falar e comer um dia depois do implante. Em uma reconstrução normal seriam dez dias de internação.
  3. A Organovo, em San Diego, EUA, anunciou em abril a impressão de células do fígado (hepatócitos), para serem usados em testes de toxidade e eficácia de novas drogas.
  4. Em março de 2014, Garret Peterson, um bebê americano de 16 meses, foi salvo graças a uma peça de plástico feita por uma impressora 3D. Ele sofria de uma doença rara, que deixava a traqueia flácida e dificultava a sua respiração.
  5. Em 2013, a Oxford Performance Materials realizou um feito surpreendente, substituir 75% do crânio de um paciente usando uma prótese impressa em 3D. O material usado foi um polímero de alta performance largamente utilizado em implantes médicos, a polietercetonacetona (ou PEKK).