Dr. Murilo Buso*
A impressionante evolução da ciência tem propiciado mudanças consideráveis. O melhor entendimento dos processos de adoecimento e o acesso à tecnologia, por exemplo, conduziram a uma transição demográfica e epidemiológica notável. Além do aumento da longevidade aliada à qualidade do viver – não é raro encontrar indivíduos com 80 anos ou mais em pleno gozo da vida, há também relevante mudança na incidência e na prevalência de determinadas doenças.
O câncer, no passado considerado uma sentença, é reconhecido como patologia crônica. Os tratamentos avançam e pacientes, quando não curados, em muitos casos podem conviver com a doença. A idade também deixou de ser um limitante para o tratamento. E, ainda mais importante: o manejo da doença tornou-se personalizado, passando a considerar aspectos individuais nos âmbitos físico, psicossocial e espiritual, garantindo a integralidade da assistência.
Ainda assim, a morte segue sendo uma certeza para todos os seres humanos, o que ameaça o ideal de cura e preservação da vida para o qual os médicos foram treinados. Por todas essas considerações, a assistência paliativa vem ganhando status nos fóruns de saúde. Segundo a OMS, cuidado paliativo consiste em uma “abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e familiares que enfrentam doenças ameaçadoras à continuidade da vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento”.
Em plena segunda década do século 21, estamos finalmente voltando as atenções à arte do cuidar aliada ao conhecimento científico. São princípios e não apenas protocolos. Definitivamente, mudamos de “terminalidade” para “ameça à vida”, de “ impossibilidade de cura” para “tratamento modificador da doença”. Estamos finalmente afastando a idéia de “não ter mais nada a ser feito” e questionando a “tecnolatria”. Essas mudanças de paradigmas, mais que necessárias, criam reflexos sobre a conduta diante da morte e fortalecem a busca do equilíbrio entre conhecimento e humanismo. Assistir a vida em todas as suas etapas deve se tornar parte fundamental da prática clínica, ocorrendo paralelamente às terapias destinadas à cura.
Enquanto o padrão estabelecido, seja público ou privado, ainda não está adequadamente preparado para lidar com as doenças incuráveis e com o processo do morrer, é na filosofia que teremos que iniciar uma transformação imediata. Tome-se como exemplo o atual modelo econômico da saúde suplementar, no qual a remuneração médica se dá pelos procedimentos realizados e através do consumo de insumos, tecnologias e estrutura física. Ou seja: quanto mais complexa e mais cara for a intervenção, melhor será a remuneração do profissional. No cuidado paliativo a premissa é exatamente oposta: uma equipe interdisciplinar, na qual o médico não é necessariamente o “comandante”, exerce a plenitude do ato de cuidar, com ações de baixa complexidade tecnológica e, por isso, baratas e pouco valorizadas.
Fomos capacitados para agregar novas condutas diagnósticas e terapêuticas, para traduzir à prática os últimos resultados de estudos clínicos bem sucedidos, para combater a doença. É chegada a hora de irmos além, enfrentando com a mesma responsabilidade o fim da vida. Assim como temos o direito à vida, cada um de nós deve ter o direito a uma morte digna e adequadamente assistida.
*Dr. Murilo Buso é oncologista. Atua no Centro de Câncer de Brasília (Cettro) e no Hospital Universitário (HUB). Desde 2003, comanda o movimento “Sem Tabaco, 100% Fashion”, que visa reduzir a mortalidade decorrente do tabagismo.