A crise econômica deflagrada em 2008 tornou o continente europeu um dos seus principais símbolos. As notícias vindas além mar colocaram em xeque os grandes investimentos feitos pelo continente em bem-estar social durante anos. Neste contexto, também há uma reflexão e uma mudança no que se refere aos sistemas de saúde, que vivem hoje a expansão da iniciativa privada. Esta é a opinião do ex- presidente da União Europeia de Hospitais Privados (UEHP), Teófilo Leite. O executivo dirigiu a entidade (equivalente à Anahp) durante dois anos encerrando em fevereiro deste ano. Ele também foi presidente da Associação Portuguesa de Hospitais Privados (APHP) até maio de 2013. Por telefone, de Lisboa, ele conversou com FH.
Revista FH: O senhor dirigiu a UEHP e a APHP num período de agravamento da crise econômica na Europa. Quais foram os impactos para as instituições privadas de saúde?
Teófilo Leite: Como presidente da APHP cheguei à presidência da UEHP num período em que se precisava implantar ações relevantes, portanto, um período de dinamização da associação portuguesa. Por um lado, buscamos ligações internacionais, retomamos a nossa inscrições na UEHP, pois Portugal não estava representado na UEHP, e estabelecemos pontes com Brasil. Desenvolvemos o contato com a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), que geraram frutos. Foi um período áureo, pois permitiu um crescimento muito importante da associação com a entrada de 30 hospitais novos, de médio porte, dotado das últimas tecnologias e respondendo às exigências não só na construção do edifício e suas funcionalidades, mas da gestão econômica e, em particular, a gestão eletrônica e de sistemas de informação.
Esse foi um período de crescimento importante com a APHP, com o desenvolvimento significativo do seguro saúde e que permitiu também aos portugueses ter a liberdade de escolha na prestação de serviço. Como consequência dessa liberdade de escolha, se permitiu que se instalasse uma concorrência de mercado entre hospitais públicos, privados e filantrópicos, e que trouxesse a melhoria geral do sistema de saúde de Portugal.
FH: Como foi o desenvolvimento do seguro saúde?
Leite: Em Portugal não havia nem planos de saúde nem seguro saúde. Temos essencialmente os seguros saúde através das companhias de seguro, em que sobrescrevemos determinada apólice e pagamos em conformidade com esse seguro, assim temos acesso aos cuidados de saúde dentro da rede dos hospitais que tenham acordo com essas companhias. Um aspecto importante é o desenvolvimento da lusofonia (comunidade de povos que falam português) com a vinda de um grande operador brasileiro a Portugal (Amil) comprando um grupo de unidades hospitalares, o que vai permitir o estreitamento das relações entre Brasil e Portugal e quem sabe o desenvolvimento também do potencial crescimento dessa operadora brasileira na Europa, pois ela tem experiência em planos de saúde e eu estou convencido que isso será desenvolvido em Portugal.
FH: Mas e o sistema público português?
Leite: Temos um Serviço Nacional de Saúde inspirado no National Health Service (NHS) e que cobre a população por obrigação constitucional, ou seja, aqui todo cidadão tem direito à saúde. Houve uma evolução no conceito do sistema de saúde português, que integra o serviço nacional de saúde prestado essencialmente pelo público para um conceito de sistema de saúde português com o serviço público, privados e os filantrópicos. O conjunto dos três dá origem ao sistema de saúde português. O sistema de seguro privado veio a partir de 1995, tivemos dificuldade de formação, mas veio à tona já neste século, outros seguros. Hoje há a possibilidade dos cidadãos pagarem um seguro saúde e há várias ofertas disponíveis no mercado que são concorrentes entre si.
FH: Voltando à pergunta, durante a sua liderança na UEHP teve o agravamento da crise na Europa. As instituições europeias sentiram esse impacto em relação ao financiamento da saúde e na compra do seguro saúde?
Leite: Na União Europeia são 28 países com sistemas de saúde diferentes tanto na sua organização quanto no financiamento. Temos, basicamente, dois grandes tipos, bismarquiano- em financiamento feito pela cobrança dos impostos do trabalho, ou seja, os assalariados descontam uma parte do salário para o pagamento deste sistema. Ou o inglês em que o financiamento não vai diretamente dos salários, mas através dos impostos gerais e do orçamento do alto estado é destinado a verba para financiar o serviço nacional da saúde. Mas há outro país que tem se afirmado com relevância, a Holanda- onde todo financiamento é feito por companhias de seguro privados, isto é, há seguradoras onde cada cidadão é obrigado a assinar um seguro de saúde privado. E isso tem sido exemplar, é um sistema muito interessante, pois é universal. Todos cidadãos na Holanda tem garantia de acesso aos cuidados de saúde, e com competição entre prestadores, se pode escolher qualquer prestador que entenda e dê condições de qualidade e segurança. A Europa caminha e, no meu mandato evoluímos nesse sentido, para que se tenha um sistema europeu. Embora os países sejam autônomos e tenham suas competências específicas no sistema de saúde, se verifica cada vez mais uma gestão de nível europeia do sistema de saúde.
FH: Você pode explicar melhor?
Leite: Porque tem a questão entre fronteiras, onde é possível, por exemplo, o cidadão alemão ser tratado em Portugal em determinadas condições, pago por seu financiador alemão, dessa mesma maneira, é possível um português ser tratado em outro país da Europa, pago por Portugal, isso cria uma mobilidade e podemos dizer que está se tornando o mercado europeu de saúde. Nesse sentido ganharam relevância dois grandes vetores, o da comunidade e o objetivo é que apareçam padrões europeus aplicados à saúde e conduza as acreditações e certificações; e o desenvolvimento do e-health, que torna o prontuário clínico eletrônico uma realidade e que o cidadão possa circular livremente pela Europa e ser tratado em qualquer lugar, porque o acesso ao prontuário clínico é imediato. A questão do e-health tem particular relevância e fez com que a UEHP participasse ativamente num grupo de trabalho junto à Comissão Europeia pra desenvolvê-lo.
FH: Mas então os hospitais da UEHP não sofreram com a crise econômica, com cortes de custos, por exemplo?
Leite: Sofreram. Essencialmente os hospitais públicos porque eles tinham muito desperdício. Juntamente às associações privadas efetuamos o trabalho de oferecer ajuda ao estado para o financiamento dos hospitais públicos. Em condições de concorrência e com as mesmas tabelas de preço e esse era um caso típico na Alemanha, onde o cidadão escolhe onde quer ser tratado, os hospitais privados tinham os resultados positivos usando a mesma tabela aplicada aos públicos, que tinham os resultados negativos. Nesta circunstância, os hospitais públicos viam o seu financiamento coberto pelo financiamento adicional do estado. O fato é que isto infringe as próprias leis de concorrência e faz com que efetivamente os hospitais públicos tenham organizado a sua gestão com vista que não tenha necessidade desses financiamentos adicionais. Isso fez com que a crise econômica tenha aumentado a importância da concorrência do mercado com os hospitais privados demostrando que são, muitas vezes, mais eficientes aos seus clientes.
FH: Quais foram os avanços neste projeto sobre as fronteiras?
Leite: O que acontecia é que o cidadão de um país europeu recorreria ao tratamento em outro país, caso não tivesse sido tratado em tempo oportuno em seu país, ele poderia recorrer ao tratamento no estrangeiro. Na volta, com as faturas e custos do tratamento, eles queriam ser reembolsados por esse valor e o estado de origem dizia que não podia pagar. Mas o cidadão recorria à Justiça e foram vários casos em que o tribunal de justiça julgou que o cidadão não conseguiu tratamento a tempo e, portanto, obrigou o estado a pagar o valor de ressarcimento. Até que a associação europeia sugeriu a necessidade de uma regulamentação específica para isso. Tal regulação saiu em 2011, e nós participamos ativamente de todo o processo desde 1995, quando foi aprovada a diretriz da ?transfronteiriça? (entre fronteiras), que sofreu vários avanços e acordos com agências dos países, e que, finalmente, foi aprovado em janeiro de 2011 e entrará em vigor em outubro 2013. Este é um avanço significativo, pois a sua implantação conduzirá a concorrência e fomentará a melhoria da qualidade do acesso.
FH: O Brasil tem seu o SUS e Portugal também tem seu sistema público, o SNS. Mas no Brasil, o sistema de saúde suplementar já atende um quarto da população. Como o senhor enxerga a convivência desses dois sistemas nos países europeus?
Leite: Não necessariamente público, pois dentro do direito do cidadão, ele tem de ser tratado dentro daquilo que ele deseja. O que está em voga é como os países podem garantir este direito essencial do cidadão de forma que eles tenham acesso a um sistema sustentável. Portanto, na discussão conceitual do sistema de saúde, o cidadão não quer saber se o hospital é público, privado ou filantrópico, ele quer ir a um hospital para ser cuidado, com acesso fácil, e sem ter condicionantes financeiros. A questão é como se reúne fundos para financiar o sistema da melhor maneira como se presta os serviços da melhor maneira também. Como se consegue isso?
FH: Como?
Leite: Michael Porter, por exemplo, escreveu uma publicação onde atestou grandes desperdícios nos recursos da gestão de saúde – ele fez vários trabalhos na Europa, em países como Alemanha e Finlândia e dedicou atenção ao sistema de saúde da Holanda. Portanto, a conclusão dele é que o importante é que o cidadão esteja no centro do sistema. E que de um lado o hospital concorra essencialmente organizando e controlando a eficiência e funcionamento do sistema e que o cidadão, que está no centro, possa optar por onde quer ser tratado com liberdade de escolha do seu prestador de cuidados de saúde. Nesse momento, ele induz a concorrência no financiamento da saúde, no sistema e nas companhias de seguro. Na Holanda, as companhias não podem rejeitar nenhum cidadão. Por mais complexo que seja, ele tem o direito de escolher a seguradora onde quer ter o seguro. Então, é um triângulo de três vértices em que uma é o Estado; o lado esquerdo é o financiador- onde companhias de seguro privadas concorrem entre si; o outro são os prestadores- onde o paciente escolhe o prestador que quer e por isso há concorrência por conta deste cidadão; e o paciente está no centro e tem a oportunidade de escolher. Quando se tem essa possibilidade da concorrência no sistema se provoca melhoria, eficiência e produz inovação.
FH: A Holanda é o grande modelo da União Europeia e da UEHP que os países europeus querem seguir e veem como exemplo de um modelo público e privado?
Leite: Exatamente. Lá também tem um sistema público com um conjunto de funções que são inerentes ao estado como por exemplo vacinação, muito apoio geriátrico à terceira idade, o que corresponde a 50% das despesas. E para outros cuidados de saúde, há efetivamente a liberdade de escolha do cidadão em selecionar os prestadores de serviço tanto público como privado.
FH: No Brasil ainda estamos começando com o modelo de parcerias público privadas em hospitais. Na sua opinião, na Europa, quais são as vantagens e desvantagens desse modelo?
Leite: É um modelo que deu certo. Em Portugal temos alguns exemplo desta parceria. Temos uma história da gestão privada em hospitais públicos nos anos 90 e temos história em Parcerias Público Privada (PPPs)- que são parcerias de construção e gestão. Também há parcerias só na construção, quando a gestão fica com estado. Em resumo, as parcerias completas (construção e gestão) são as mais adequadas. Aliás, o essencial não é o custo da construção, é a despesa do hospital, pois por ano custa quase como a construção de outro hospital. Por isso, a gestão é primordial. Nós temos experiência com as PPPs completas e há outros exemplos, como o que vigora em Valência, na Espanha, onde o estado tem contrato com os privados para a prestação dos cuidados. Mas tudo isso são exemplos que podem se tornar ultrapassados. A resposta é exclusivamente privada, desde que a regra de mercado esteja clara e que ao estado caiba garantir os direitos dos cidadãos, que o controle da prestação exista de maneira adequada, que as regras de concorrência estejam bem definidas, pois os privados têm capacidade de construir todos os hospitais necessários – e com a regulação adequada do mercado de saúde pelo estado. O caminho é, inequivocamente, para que o estado se retire destas funções e as concentre na população, garantido os direitos do cidadão. Isso é aplicável para saúde, ensino e outras funções do estado.
FH: Acredito que o senhor tenha acompanhado as propostas do governo de trazer médicos de vários países, inclusive Portugal, para trabalhar no Brasil. Qual sua opinião sobre isso?
Leite: É uma ideia que não vai dar certo, porque os médicos portugueses são insuficientes para Portugal. Nós também importamos médicos do Brasil, Espanha, Cuba e outros países da América Latina, nós não somos superavitários em médicos, precisamos desenvolver nossa formação para nos posicionarmos como exportador de médicos. Mas neste momento, o Brasil está mais adiantado que Portugal em termos de capacidade de formação, pois Portugal tem um número limitado de universidades em comparação ao Brasil, isto é, a capacidade de formação do Brasil é muito maior que a de Portugal. O que temos visto é que o fluxo contrário tem sido maior.
Crise abre caminho para iniciativa privada na Europa
Para Teófilo Leite, ex-presidente da Associação Portuguesa de Hospitais Privados (APHP), crise na Europa mostra a necessidade da participação da iniciativa privada no setor de saúde
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