“Um homem derrubado por um adversário pode levantar-se outra vez. Um homem derrubado pela conformidade fica para sempre no chão”
Thomas Morus
Imagine uma sociedade perfeita, em que as pessoas são cordiais e cultas, a propriedade privada não existe, e o tecido social padroniza-se pela ausência de conflitos e problemas, e para completar a igreja detém de forma sábia um poder moderador sem ultrapassar seus limites éticos e morais, e que se isola dos males políticos e econômicos de seu tempo. Você que me lê deve estar pensando que estou descrevendo um país de regime socialista ou social democrático que de tão perfeito não aparece no mapa. Na verdade, estou descrevendo o pano de fundo no qual se desenvolve a obra de maior importância do inglês Thomas Morus, “Utopia”, publicada em 1516. Advogado, político, embaixador, ensaísta e católico fervoroso, descrevia, naquela época, as circunstâncias políticas que estavam, segundo o autor, corrompidas dentro da Inglaterra no reinado de Henrique VIII, que se destacava por uma postura extremamente despótica em relação ao seu governo.
Agora imagine um hospital em que você, como paciente, é recebido de forma calorosa, mas não necessariamente afetada, os trâmites para o processo de internação são rápidos e você é logo transferido a um leito. Seu médico logo vem lhe visitar, mas você sabe que se precisar de algo sempre haverá alguém para atender ao seu chamado. Sua refeição chega quentinha e gostosa, as amenidades oferecidas estão ao seu gosto e você, após resolver o motivo pelo qual se internou, vai para casa num espaço de tempo bem curto e com todas as orientações e instruções sobre o que fazer no caso de acontecer quaisquer problemas relacionados ao procedimento para o qual você foi internado.
Os gestores desse suposto hospital conseguem conduzir sem retardos todos os processos clínicos e administrativos, as fontes pagadoras não promovem glosas nem exigem descontos para repasse de valores anteriormente acordados, e agora não cumpridos, os pagamentos são feitos no tempo devido e de forma satisfatória a fornecedores, profissionais e demais membros da cadeia de produção necessária ao pleno funcionamento da estrutura.
Do ponto de vista de eficiência, efetividade, legalidade e principalmente moralidade, me parece haver um paralelo entre o enredo utópico da obra de Morus e esse suposto hospital.
Por isso, não deixo de ter um sentimento estranho de que falta alguma coisa quando analiso textos ou vou a encontros com lideranças que fazem a gestão dos hospitais, e do próprio sistema de saúde que escolhemos como fio condutor de nossas práticas. Grosseiramente falando, é como se a todo momento estivéssemos à frente de um sistema que nos é apresentado como uma coisa muito boa, e que no final das contas, sob a letra fria dos números, se revela como oficialmente eficaz. Mas os processos que formam a etapa intermediária entre a proposição e o resultado nem sempre são convincentes, e principalmente transparentes, sob diversos aspectos.
Dentre os incontáveis pontos que poderiam ser analisados a esse respeito, a questão do Corpo Clínico é a que muito me incomoda. E incomoda porque existe uma infinidade de instituições que não parecem estar preocupadas com as consequências da atuação de um Corpo Clínico de qualidade, salvo algumas instituições robustas e consagradas. E essa atuação tem que ser de qualidade mesmo, pois se assim não for todo o processo assistencial fica comprometido. Isso não é novidade para ninguém.
Mas com tantas transformações acontecendo no mercado de saúde, isso tem alguma relevância?
Os hospitais privados que atendem primordialmente a clientela particular e usuários de planos de saúde tem cada um deles um histórico que privilegia a sua missão, e a ele está submetido, como uma lei magna. Gestores comprometidos com a qualidade assistencial não oferecem espaços para contestação desses valores, sempre claros e bem definidos, sob coordenação e gerência de profissionais próprios competentes, e auditados com frequência. Seu grau de excelência se destaca perante a comunidade e nos mostra, de forma cabal e inquestionável, que é possível crescer mesmo em tempos ruins. E olha que nem estamos falando em selos de Acreditação.
Os demais assemelhados seguem ou tentam seguir seus próprios valores e estratégias na expectativa de alcançar reputação suficientemente alta para competir num mercado acirrado. Mas em ambos os casos, a busca por um Corpo Clínico qualificado continua sendo uma preocupação constante, pelo simples fato de que sem isso não há qualidade assistencial, e se não há qualidade assistencial, não se alcança reputação alguma.
Mas e os hospitais públicos?
Assistimos a tantas mudanças e em tão pouco tempo na prestação de serviços hospitalares públicos que às vezes a gente se perde. No bojo da Lei Orgânica do SUS (Lei 8.080) e na Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656), a prestação de serviços públicos por empresas privadas – Organizações Sociais de Saúde (OSS) na maioria do casos, outras tantas autarquias na forma de Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS); ou empresas públicas de direito privado, tais como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) – passou de possível para sistêmica, de tal maneira que essa forma de mercantilização do SUS que antes pedia licença para se apresentar. Hoje é desejada pelo hospital, que busca a empresa na porta, acomoda no sofá e ainda serve um cafezinho.
Tal mudança no perfil gerencial em nível macro há algum tempo vem provocando incômodo no corpo assistencial estabelecido: aumentou muito a conversa baixinha, ao pé do ouvido, entre médicos nos corredores dos hospitais, sobre o assunto. Muitos se sentem ameaçados, ou percebem que seus instrumentos e espaço de trabalho, ou equipe de apoio, já não está disponível como antes, para a realização de um trabalho que um dia foi considerado bom. Os vencimentos oferecidos aos médicos terceirizados são superiores aos dos médicos da casa, concursados ou selecionados. Os editais para seleção são algumas vezes risíveis na sua elaboração…alguém até agora não se identificou nesse cenário?
Façamos então um processo licitatório, como ordena a lei, para ocupar setores e especialidades necessárias ao atingimento de metas previamente acordadas e que condicionam ao final o repasse ou não de verbas.
Nesse momento o encanto se rompe.
Todo o esforço que a instituição teve de manter os parcos processos clínicos eficientes começam a se tornar dispensáveis: afinal, quando o hospital abre a perspectiva de uma empresa se responsabilizar por um espaço tão nobre como o Corpo Clínico, ele abdica de seu pétreo dever de fiscalizar o andamento do serviço e de cobrar qualidade e eficiência. Nos contratos de terceirização de serviços médico, os profissionais que compõe essas equipes frequentemente nunca colocaram um pé naquele hospital para o qual está sendo convidado a trabalhar, alguns tem uma formação de qualidade duvidosa, grande parte são recém formados sem experiência ou muito velhos para ocupar certas funções, eventualmente alguns falsificam diplomas, carimbos ou outros documentos. Outros tantos não se encontram regulares perante o Conselho Federal de Medicina ou a justiça, ou simplesmente não reúnem qualificações necessárias para exercer a função.
A regra é clara. Se a responsabilidade de contratar passou para terceiros, são os terceiros que teoricamente devem passar a zelar pela qualidade da prestação do serviço. Ou seja, seu hospital, seu local de trabalho, deixa de lado a gestão clínica. Se não há gestão clínica, ou ela somente se aplicará aos profissionais que ainda não foram substituídos por terceiros, a tarefa que já não era fácil com um Corpo Clínico coeso, passa a ser quase impossível quando fragmentado. E, na prática, a argumentação de que os novos profissionais terceirizados exercerão seu trabalho subordinados às normas estabelecidas costuma ser uma tremenda falácia. Basta um olhar mais atento.
Hospitais com reconhecimento de sua governança e qualidade dificilmente terceirizam algum médico ou equipe, justamente porque sua excelência proporciona bons vencimentos, bom ambiente de trabalho e regime de contratação único, muitos com plano de carreira inclusive. É um circulo virtuoso em que empresa, o profissional, e principalmente os pacientes saem ganhando. Hospitais que ainda não alcançaram essa condição, seja público ou privado, precisam rastejar atrás de profissionais ou equipes que façam um trabalho que com frequência não pode ser feito por ausência de profissionais disponíveis, qualificados ou que aceitem os salários ofertados.
Mas, ainda assim, ao final os resultados prevalecem. Segundo o Instituto Brasileiro de Organizações Sociais de Saúde (IBROSS), as OSS entregam um resultado melhor em relação às unidades que não tem sistemas de gestão terceirizado, o que é reforçado por Mendes e Bittar com dados da Secretaria Estadual de Saúde do Estado de São Paulo.
A terceirização da assistência médica, a partir da contratação de empresas, caracteriza descumprimento das decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que proíbem a terceirização de “atividades-fim”. Borges traz mais alguns elementos contributivos para essa discussão, com uma análise mais aprofundada e preocupante, no seu texto publicado no site Jusbrasil. Essa é outra discussão quente e não pacificada.
Existem muitos aspectos que permeiam essa relação entre o público e o privado, que fogem à discussão proposta nesse texto. Mas como médico e gestor, posso afirmar que só quem está respirando a atmosfera das dependências dos hospitais com Corpo Clínico terceirizado pode entender que essa transição de cenários, do público para o privado, cria a sensação de que o Corpo Clinico não tem tanta relevância assim. Ainda pairam muitas dúvidas acerca desse modelo de prestação de serviços médicos intra-hospitalares se é ou será uma boa alternativa para quem está preocupado com a qualidade assistencial. Poucos estudos sobre o desempenho do Corpo Clínico entre hospitais geridos por OSS têm sido conduzidos, e praticamente nenhum benchmark entre esses hospitais tem se mostrado à altura para responder a essa questão.
Não bastasse a ausência de trabalhos que de forma clara e transparente falem sobre os processos de terceirização do Corpo Clínico e que possam ser apresentados nos diversos fóruns de gestão hospitalar que se proliferam pelo país, há uma percepção de que, de fato, isso não parece ter importância. O movimento veio para ficar e sabe-se lá como os gestores vão lidar com isso mais à frente, porque, não tenham dúvidas, os conflitos cresceram. Outros preferem não se expor com receio de represálias ou alijamento politico (outro componente frequentemente associado a ineficiência), preferindo dizer o milagre, mas não o nome do santo. Falar a sério sobre isso incomoda.
Talvez esteja na hora do tema ser abordado de forma sistêmica, revelando também como os processos de terceirização do Corpo Clínico acontecem, e não apresentar somente resultados. Mas tenho a sensação que esse é um assunto que ninguém vai expor, ainda que seja para provar o contraditório. Transparência é um atributo às vezes difícil de mostrar e pode trazer mal estar para quem ainda não aprendeu a reconhecer o seu valor.
O fato é que os hospitais morrem quando seu Corpo Clínico passa a ser mercadoria barata. E muitos hospitais estão morrendo por dentro.
Thomas Morus morreu na plenitude de sua trajetória, em julho de 1535. O motivo, dentre outros, foi a recusa em endossar a separação da Igreja da Inglaterra da Igreja Católica de Roma, sob ordens do monarca Henrique VIII. Sustentou seus princípios até o fim, acreditando na justiça e no respeito à integridade do caráter humano, como na sua Utopia. Foi executado, deu no que deu.