A maioria absoluta dos profissionais que trabalham em hospitais nunca pensa sobre o que será comentado a seguir … quase 100 %. Se quem trabalha em hospital não se atém a isso, imagine quem está no segmento da saúde e nunca sentiu o cheiro de um corredor hospitalar !

Vale a pena começar comentando que o produto vendido pelo hospital não é absolutamente padronizado, porque hospital não fabrica carros – cuida de doenças, ou efeitos colaterais, ou sequelas em pessoas – algumas nem doenças são: por exemplo, o parto.

A doença não afeta todos da mesma forma: pode afetar mais ou menos, com intercorrências maiores ou menores, com danos maiores ou menores, de uma pessoa para outra. E tratar uma doença quando o diagnóstico é precoce, ou tardio é absolutamente diferente. Portanto, a infeliz da doença não é padronizada, embora existam protocolos de atendimento que sugerem um padrão na conduta – veja: o protocolo é uma sugestão, intenção, roteiro, guia, manual de como a doença deve ser tratada, e quase 100 % das vezes não se traduz na realidade do que ocorrerá com o paciente no tratamento. Mais que isso: em atendimento de pronto socorro, por exemplo, o protocolo nem está associado à doença, mas à queixa … a doença deverá (se Deus quiser) ser identificada durante o atendimento.

E o paciente é “matéria-prima” completamente diferente um do outro: homem ou mulher, criança ou adulto, ou velho, gordo ou magro, alto ou baixo, grave ou não, agudo ou não, hipertenso ou não, diabético ou não, com necessidade especial ou não. Quando ficamos velhos aprendemos que o maior barato da vida é que as pessoas não têm um gabarito – são completamente diferentes fisicamente, mentalmente, emocionalmente … é a coisa mais fascinante da vida, imagine em cada coisa que fazemos se todos fossem absolutamente iguais: não existiria esporte porque todos teriam o mesmo desempenho e na competição todos saberiam o que o outro vai fazer, eu mesmo não estaria aqui escrevendo, porque não haveriam nem mesmo opiniões diferentes da parte de quem lê – a vida não teria sentido. E isso faz com que o atendimento de um paciente seja diferente, por mais padronizado que se tente fazer: o remédio em um não vai dar exatamente o mesmo efeito que no outro, o atendimento será elogiado por um e detestado por outro, o procedimento vai ser contestado por um e defendido por outro, e assim por diante.

Em consequência destes dois fatos, diferente de uma indústria, o hospital não tem 100 % de previsibilidade do que vai fazer no ano que vem, boa parte das vezes no mês que vem, e as vezes nem na semana que vem … explicando:

  • Utilizando uma linguagem bem rasteira, uma indústria fabrica o que é encomendado, ou o que ela, por sua conta e risco, calcula que será vendido e pode ser estocado até a venda sem estragar. Então consegue saber com alto índice de certeza o que vai gastar na produção, porque a ficha técnica do produto condiz exatamente com o que será produzido;
  • Já o hospital … êêê hospital … nunca sabe nem mesmo exatamente o que vai gastar de dipirona hoje, quanto mais amanhã, na semana que vem, no mês que vem. Naquilo que depende da gestão de suprimentos, trabalha com médias – a experiência do gestor de suprimentos na área hospitalar faz com que ele erre cada vez menos, mas o bom gestor de suprimentos hospitalares é o que tem certeza que erra: o que pensa que acerta é danoso, porque engana à si mesmo (para não falar em outras coisas, que não é o objetivo aqui).

Isso posto, diferente de uma montadora de veículos, por exemplo, que pode basear toda a sua logística em fichas técnicas e produção, inclusive auditorias e demais demonstrativos financeiros, os protocolos do hospital não podem ser utilizados para isso.

Mesmo que exista um hospital que tenha tudo protocolizado, absolutamente tudo, (duvido que exista … se conhece algum, me leva pra ver … aposto meu último dólar furado que no final da visita vai concordar que o que existe representa a minoria), para efeito de gestão se o hospital utilizar este protocolo estará cometendo erro no atacado, e não no varejo, porque nele não vai encontrar o que é utilizado no procedimento, mas tudo que pode ser utilizado no procedimento, e a diferença é gigantesca. Basta ver os kits de insumos associados aos protocolos – como o protocolo descreve variações do que pode acontecer no procedimento, é evidente que remete ao apontamento de excessos: algo que pode ser utilizado se necessário, por exemplo, na maioria das vezes não é necessário, e isso pode ser um medicamento, um material, um exame, um cuidado !!!

O hospital não produz exatamente descrito na ficha técnica – produz de acordo com as variações que envolvem o paciente, a doença, as condições pré existentes, as condições climáticas, o humor do profissional assistencial … e assim por diante !!!

Então cheguei onde queria: para aferir exatamente o que foi produzido seria necessário que o hospital utilizasse uma lista do que foi acontecendo com o paciente durante o atendimento. Pensou em fazer um checklist ? … boa ideia … mas não é necessário criar um outro instrumento: este checklist é a conta hospitalar !!!!

A conta existe justamente para prestar conta para quem paga, daquilo que foi feito. Esta é a essência dela: descrever o que foi feito para que alguém pague. Este primeiro paradigma costumamos discutir em todos os cursos de gestão comercial: hospital não vende o que o cliente quer comprar (a cura), vende o que foi feito (a assistência) – porque na maioria absoluta das vezes o que está sendo vendido não é a cura. Estranhou, então pense nos procedimentos que se referem ao diagnóstico: como o próprio nome diz é diagnóstico, ou seja, descobrir o que se tem, e não curar … nem mesmo tratar.

Outra analogia simples para entender a conta é o supermercado. Voce pode entrar com uma lista do que vai comprar, mas duvido que vai sair do supermercado exatamente com o que planejava. A lista é o protocolo, e aquela fita amarelinha detestável que vai crescendo conforme os produtos vão passando pela esteira é a conta hospitalar. Se o supermercado basear sua gestão nas contagens de estoque e nas requisições de reposição dos produtos para as gondolas e araras, vai à falência instantaneamente … a gestão do supermercado está fundamentalmente baseada no que passou pela esteira dos caixas.

Quando o hospital forma suas contas com o máximo nível de detalhe possível, tem condições de:

  • Realizar auditorias cruzadas: o que comprou x o que vendeu, o que gastou em utilidades x taxa de ocupação, e assim por diante;
  • Comparar a rentabilidade de um procedimento entre equipes;
  • Comparar o custo do seu procedimento com o custo do mesmo procedimento realizado em outro hospital;
  • Controlar adequadamente o repasse para médicos e outros parceiros comerciais;
  • Comparar sua prática comercial com as práticas dos concorrentes;
  • … esta lista nas aulas e projetos de consultoria é muito maior (tenha certeza disso) – vamos parar por aqui para não ficar monótono ok ?

Antes de continuar, e necessário reforçar que se o procedimento vai ser vendido em forma de pacote ou não, nada tem a ver com tudo isso que estamos discutindo: uma coisa é formar a conta com o máximo nível e detalhe possível, e outra é como a conta será apresentada para a fonte pagadora, com que preço, etc. Exaustivamente já discutimos que pacote é algo de interesse da fonte pagadora, e eventualmente dos médicos, mas não é do interesse do hospital … nunca é do interesse do hospital !

Voltando ao foco, me permito elencar erros comuns – na verdade pecados que destroem completamente a gestão hospitalar:

  • Já que a operadora glosa sempre 10 %, vamos lançar 20 % a mais na conta, assim o auditor cumpre a meta dele e a gente ainda sai ganhando;
  • Já que a operadora não paga direitinho, e tudo acaba se resolvendo na base do acerto comercial não vamos nos preocupar com a precisão dos lançamentos nas contas;
  • Já que será pago em forma de pacote, nem vamos compor a conta – não é necessário.

Quem pensa dessa forma só faz o hospital perder … quem perde com isso é sempre o hospital: seja na imagem, seja no processo de faturamento e auditoria que acaba ficando caro e, principalmente, na gestão hospitalar que passa a não ter a menor ideia do que gasta realmente na sua produção.

Tenho um cliente que é uma operadora de planos de saúde, e que tem rede própria. Na rede própria atende também pacientes de outras operadoras. Existem centenas de casos destes no Brasil. Nas primeiras visitas constatei que as contas de uma auto-gestão ligada a um órgão público, eram pagas de forma aleatória, porque havia um componente político envolvido. E as contas dos atendimentos da própria operadora (mantenedora) não eram feitas, porque os hospitais eram filiais, e portanto, não havia exigência legal para isso. Neste cenário esta empresa não tem a menor condição de auditar seus gastos em relação à sua produção, e isso era evidente porque independentemente do volume de atendimentos, o consumo de insumos era constante (praticamente igual) – sem todas as contas fechadas, seguindo o mesmo fluxo e critérios, não era possível avaliar nada;

Dei curso em uma operadora que trabalha quase exclusivamente com rede própria: compra quase nada de serviços de terceiros. Como a rede própria são filiais, não formava contas. Este cliente achava que, como fazia tudo internamente, tudo saia mais barato. É um erro comum ter esta percepção de que voce pode ser mais eficiente em tudo fazendo tudo na sua rede própria – não existe a possibilidade de ser mais eficiente em tudo na área da saúde. Quando as contas começaram a ser fechadas, uma a uma, deu visibilidade daquilo que, dentro da sua própria rede, era mais caro do que comprar fora. É claro que implantar este processo custa, mas é mais claro ainda que o retorno é rápido, liquido e certo.

As vantagens de ter as contas rigorosamente apuradas são inúmeras … vou parar por aqui, mas gostaria de citar somente mais um efeito colateral que as contas detalhadas trazem para os hospitais … que qualquer gestor hospitalar reza para que ocorra:

  • Imagine um cenário em que todas as contas fossem pacotes – um único item lançado com o procedimento principal, e eventualmente alguns itens secundários – como pacotes. Na prática não haveria auditoria de contas: tudo se resumiria a aferir se o procedimento cobrado estava ou não autorizado, seja na Saúde Suplementar, seja no SUS;
  • Quando não existe auditoria de contas o prontuário do paciente não existe: não adianta dizer que o prontuário é formado a partir da consciência dos profissionais assistenciais, que uma boa comissão interna de prontuários melhora a qualidade dos prontuários, ou que os processos de certificação da qualidade garantem que tudo que é importante vai estar descrito nas páginas do prontuário em papel, ou nos bytes do prontuário eletrônico – isso é pura fantasia. Tudo isso (consciência do profissional, comissão de prontuários, selo de qualidade) realmente melhora os prontuários … mas o que realmente faz com que os prontuários tenham qualidade é o bolso (como dizem, o órgão mais sensível do ser humano);
  • Desde 1993 estou às voltas com todos os tipos de hospital … faz tempo … conheço centenas de hospitais, e posso provar: quando não há auditoria de contas o prontuário ficas “às moscas”. Como não se paga o que não se tem evidência, e o prontuário é a única evidência real, a conta hospitalar é o único instrumento real de melhoria dos prontuários de pacientes.

Concluo minha reverência à conta hospitalar, resumindo:

  • Além de ser um instrumento de cobrança, a conta hospitalar é o melhor instrumento de gestão hospitalar confiável, e ainda propicia uma série de controles onde as pessoas nem imaginam, por exemplo, a questão do prontuário dos pacientes;
  • O que me causa estranheza é quando vejo pessoas dizendo que se ela não existisse tudo na saúde seria melhor !!!