Necessários para avaliação médica, a solicitação de exames se encontra num verdadeiro impasse: por um lado, pacientes que têm no Dr. Google um aliado para as dúvidas sobre doenças e descobertas de novos procedimentos; por outro, um sistema que impulsiona o profissional a atender mais em menos tempo. Essa combinação, por vezes, resulta em alta quantidade de requisições de exames e, consequentemente, atinge e pressiona os custos do sistema de saúde por completo.
Neste cenário, o papel do médico se torna um agente fundamental, e a falta de formação adequada, atrelada ao desconhecimento de critérios clínicos – considerado importante no ato da requisição – pode ser o ingrediente chave para a perpetuação dessa distorção.
De acordo com o diretor de Acreditação e Qualidade da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), Wilson Shcolnik, um médico mal informado e entusiasmado pelo marketing da indústria certamente começará a solicitar mais exames. ?É preciso entender que sem evidências científicas não se deve requerer exame de laboratório, sobretudo quando não se sabe o que fazer com o resultado?, enfatiza.
Saber dosar o limiar entre acesso e excesso é notadamente um grande desafio do setor, não só apontado por Shcolnik, mas também pelos gestores presentes no IT Mídia Debate, que colocou em pauta o atual cenário do uso dos recursos laboratoriais e seus efeitos na cadeia de saúde ? entre eles a evidente potencialidade de onerar o sistema e os prejuízos ao paciente.
Cenário
Outra provocação posta em xeque é como mudar o foco da doença para valores como promoção e prevenção, sem que ocorra desequilíbrios, uma vez que o modelo brasileiro ainda se sustenta com base na quantidade de procedimentos.
O que poucos entendem é que promoção e prevenção em saúde não atribuem custos para a cadeia de saúde, mas evitam, na maioria das vezes, outros gastos que seriam imputados ao sistema. ?É preciso se acostumar a ouvir e falar do exame normal (exame de rotina ou padrão como o de colesterol, triglicérides e etc), que tem um valor e precisa ser considerado quando o assunto é prevenir. É claro que não estou falando em excesso, o que deve prevalecer é a medicina baseada em evidências?, considera Shcolnik.
A Associação Paulista de Medicina (APM), representada por seu diretor Financeiro, Murilo Melo, partilha da mesma opinião e destaca, ainda, o atual momento da história do País em relação a abertura indiscriminada de escolas de medicina, que são carentes de avaliação de qualidade, e contribuem para que os novos médicos não passem pelo ciclo de como solicitar um exame.
O ideal sob a ótica da APM baseia-se em dois pilares:
Hipótese de Diagnótisco: avaliar a real chance de o paciente ter determinada doença ao pesquisar a lista de exames possíveis e, depois, aplicar um princípio matemático, que é intuitivo, embora exista uma forma de se calcular, para saber qual a probabilidade do doente ter realmente a enfermidade.
Protocolos Clínicos: fazer uso da medicina baseada em evidências deve ser cada vez mais frequente para um melhor raciocínio clínico.
?Chegamos a uma situação chamada de ?perde-perde?, onde a operadora paga o que achamos que ainda não é o ideal; e o médico, por sua vez, abandona a ética de fazer o que é bom para os pacientes e faz o que é melhor para pagar suas contas?, afirma o representante da APM ao referir-se às rápidas consultas e o alto número de solicitação de exames – situação considerada por Melo difícil de resolver.
O presidente da Central Nacional Unimed, Mohamed Akl, atribui o atual cenário de desperdício nos diagnósticos à alta disponibilidade de exames no mercado e relembra que, há poucos anos, os pacientes eram atendidos por cerca de 50 minutos.
?É muito mais simples fazer uma solicitação nos primeiros cinco minutos de consulta, mas o médico não se dá conta dos malefícios que isso gera. E digo mais, aumentar a remuneração na saúde suplementar, que hoje tem uma média de R$ 60, não vai resolver o problema?, considera Akl.
Para ele, a educação continuada seria um dos caminhos mais corretos tanto para que os pacientes tenham consciência de que o médico é quem deve indicar a necessidade do exame e, claro, para que o profissional do outro lado da mesa tenha ciência de uma possível solicitação.
Apesar de o mercado não mensurar o impacto da realização em excesso de exames nos custos da saúde, os indícios de que eles aconteçam são reais. Para dosar a medida certa, para que não haja desperdício de recursos e nem danos ao paciente, a Alliar Medicina Diagnóstica aposta em reuniões semanais em cidades do interior do Brasil para mostrar os lados positivos e negativos de se solicitar exames.
?Não podemos achar que a entrada do PET/CT, que é um exame caro, por exemplo, vai resolver qualquer situação?, diz o diretor médico da empresa, Francisco Maciel Júnior.
Outra ação da empresa é atrair, por meio de reuniões científicas, residentes de outras especialidades que não a de diagnóstico por imagem para que tenham um melhor conhecimento sobre exames solicitados.
Laudos abandonados
Para a mesa debatedora, a não retirada de laudos pode ser um importante indicador de desperdício, no entanto, as empresas parecem não saber como mensurar esse dado e facilidade em verificar os resultados pela internet torna esse levantamento ainda mais difícil. Segundo a Sociedade Paulista de Clínica Médica, o número de laudos não retirados gira em torno de 35%, porém esse levantamento é posto em dúvida pela SBPC, que considera este número o maior recorde já visto. ?Claro que repudiamos essa porcentagem, pois no nosso entendimento só os laboratórios são detentores dos dígitos reais?, avalia Shcolnik.
Em um dos eventos de indicadores laboratoriais da Sociedade, cerca de 65 laboratórios foram provocados a responder sobre os exames não retirados. Com 58 respostas em mãos, para surpresa do executivo, foi constatado que 90% não controlam o número de laudos não retirados, 40% não controlam os resultados enviados aos médicos e 11% não registram os contatos telefônicos feitos para comunicar sobre resultados de exames.
?Trouxemos o problema para dentro de casa e infelizmente ainda não dispomos do número real, pois nem todos responderam. Nós da SBPC, ao mesmo tempo em que repudiamos números sem base alguma, reiteramos a importância de se ter esse dado?.
Para o representante da Central Nacional Unimed, a incidência de exames não retirados em imagem deve ser bem menor do que de análises clínicas. ?No nosso caso, registramos há um certo tempo uma média entre 23% e 25% de exames não retirados. Hoje não sei o número exato por causa da internet?, conta Akl.
Maciel, da Alliar, arrisca dizer que no caso de tomografia e ressonância esse número deva ser menor de 5%. Em sua visão muitas vezes o paciente não volta para buscar o resultado, dificultando a conquista do valor real. ?Não temos como medir se o paciente acessou ou não o relatório pela internet, não é um critério tão fácil de mensurar?, completa.
Para se ter uma ideia, um levantamento do Sistema Único de Saúde (SUS), de 2007, mostra que 23% dos exames de Papanicolau não foram retirados, entretando ficou evidente durante a discussão que números como esses ainda não são mensurados de maneira consistente.
Em busca do modelo ideal
Muito se discute sobre qual caminho seguir, mas ainda não há um modelo de sucesso a ser seguido. De acordo com Murilo, da APM, só há uma certeza: não se pode tirar a autonomia do médico na hora de solicitar exames.
Além das setas indicativas já mencionadas – como educação continuada – o uso racional dos recursos nos serviços de diagnósticos dependem de uma série de fatores como um novo modelo de reembolso e remuneração, aplicação de diretrizes clínicas ? como as já existentes da Associação Médica Brasileira (AMB) -, investimentos em Tecnologia da Informação (TI) e programas de qualidade e acreditação por parte dos laboratórios também.
?Nenhum País chegou ao modelo ideal, afinal é difícil desenhar um sistema equilibrado que agregue valor em todos os elos da cadeia?, diz Melo.
Outra possibilidade levantada pelos debatedores é a do paciente pagar uma parte do exame solicitado. Entretanto, a associação médica se posicionou contra. ?Isso nos preocupa, porque os tipos de planos de saúde que mais cresceram são os mais baratos, considerados uma substituição do SUS, que tem melhorado e consegue fazer muito com a falta de verba que tem, mas não podemos penalizar o paciente?, pondera.
Proficiência e sua importância
Diferentemente dos Estados Unidos, onde todos os laboratórios clínicos têm a obrigatoriedade da acreditação, além de terem um diretor médico e passarem por testes de proficiência, no Brasil apenas 1% dos mais de 10 mil laboratórios são acreditados.
A falta de inspetores responsáveis por cuidar do quesito qualidade é apontada como causadora deste baixo número. ?Infelizmente não temos avaliadores a quem caberia cuidar desse assunto?, lamenta Shcolnik.
Em 1998, a SBPC lançou o programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos (PALC) que avalia um laboratório através de uma auditoria e determina se ele atende a requisitos predeterminados para exercer as tarefas a que se propõe. Atualmente existem mais de 100 laboratórios no Brasil acreditados pelo PALC, que fazem cerca de 32 milhões de exames ao mês, o que representa de 30% a 40% do volume total de exames laboratoriais realizados no País. Shcolnik destaca a importância da ferramenta para a gestão do desempenho do laboratório em relação aos seus processos analíticos, o que possibilita maior segurança e confiabilidade para laudos liberados.
Antes ainda de incentivar a acreditação laboratorial, a SBPC criou o Proficiência em Ensaios Laboratoriais (PELM) em 1977,
em que os laboratórios podem comparar seus resultados de modo a garantir a concordância de laudos do mesmo paciente em diferentes regiões do País. ?O laboratório não deve entender a participação em um programa de proficiência como uma exigência legal, mas como elemento fundamental no processo de melhoria contínua?, pontua.
A questão de um diretor médico também é vista com importância no Brasil, embora não seja um cargo necessário. ?A interlocução entre médicos é mais fácil e, às vezes, outros profissionais têm determinada carência setorial que acaba influenciando na comunicação, mas temos que encarar a realidade do País, e esta é a nossa?, conclui Melo, da APM.
PROMOÇÃO DA SAÚDE
A Alliar Medicina Diagnóstica tem estimulado seus funcionários a fazerem exercício físico, por exemplo por meio de uma competição de corrida com direito a premiação.
Segundo Maciel, em alguns grupos está sendo desenvolvido o lado social. ?O acesso aos planos e convênios de saúde é pequeno, com adesão de apenas 25% da população. Por isso, trabalhamos com pequenos grupos de mulheres de comunidades carentes, onde disponibilizamos o exame de mamografia feito pelos nossos médicos?.
Além do exame, são oferecidas palestras sobre nutrição, câncer e outros temas que podem ajudar na prevenção da saúde. ?A demanda por diagnóstico por imagem é crescente e precisamos orientar as pessoas em como usar?, diz.
A QUESTÃO DO ROL
Há pouco mais de um ano a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) publicou a Resolução Normativa 211, que amplia a lista dos procedimentos, que devem ter cobertura obrigatória pelos planos de saúde.
Foram incluídos 69 itens, modificados ou cujas diretrizes de utilização foram regulamentadas no ?Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde?. Entre os itens adicionados estão 41 cirurgias por vídeo, além de que os consumidores passaram a ter acesso a mais de 13 novos exames, incluindo a análise molecular de DNA dos genes EGFR, K-RAS e HER-2.
?Depois dessa normativa, o número de PET/CT triplicou. Daqui uns dias vão liberar para qualquer procedimento. Em 2011 foram 149 exames, em 2012 foram 345, e nos dois primeiros meses de 2013 já foram 80 exames?, revela Mohamed Akl, presidente da Central Nacional Unimed.
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
Vista como um grande ?peso? para as contas do setor, a judicialização não para de crescer. Pesquisa feita em 2008 revelou que no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, foram localizadas 111 decisões relacionadas à saúde suplementar com pedidos assistenciais, somente no ano de 2005, número superior ao total das decisões analisadas de 1991 a 1998.
Neste novo cenário, o Judiciário vem recebendo diferentes tipos de demandas que terminam por promover uma significativa pressão sobre o aparato judicial.
Casos como o aprovado no Estado de São Paulo, onde o beneficiário de um plano de saúde local pode ter atendimento nacional é um dos apontados pela Central Nacional Unimed. Para Akl, isso não poderia acontecer. ?Imagina um cidadão com plano lá no Maranhão vir tratar seu filho aqui na capital paulista porque seu vizinho disse que o Hospital Sírio-Libanês é o melhor para curar aquele tipo de doença. Definitivamente não pode?, considera.
O que precisa é o paciente estar alinhado com o médico e com a operadora de saúde para um melhor resultado para sua própria saúde, além de ser o melhor para o sistema. ?Tenho certeza que nenhuma nação faz tanto com tão pouco como o Brasil, mas acho que precisa mudar. Somos contra a judicialização na APM, acreditamos que para o nosso País funcionar os contratos precisam ser valorizados?, finaliza Melo.
*ERRATA: Diferente do que a FH havia informado na reportagem ?O Diagnóstico em Xeque? (edição 210, página 60), o programa de Proficiência em Ensaios Laboratoriais (PELM), lançado em 1977 pela SBPC/ML, não é de acreditação, mas, sim, de comparação interlaboratorial. Já, em 1998, a entidade lançou o Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos (PALC) que, atualmente, possui mais de 100 instituições acreditadas
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