No Brasil, quando se trata de pesquisa científica há muitos desafios a serem enfrentados. Mas essa perspectiva começa a mudar com os holofotes atraídos por uma economia emergente. É o que conta Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro um dos nomes mais conhecidos da neurociência no Brasil. Se por um lado há um horizonte promissor, por outro, há ainda muito a ser conquistado pelo cientista brasileiro que, segundo o pesquisador, enfrenta grandes desafios.? Temos de ter clareza de que estamos muito aquém do nosso potencial e aquém em termos da qualidade da ciência feita aqui?, afirma.
Nascido em Brasília, Ribeiro é biólogo e tem doutorado em Neurociências e Comportamento Animal pela Universidade Rockefeller. É professor de Neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde também dirige o Instituto do Cérebro. E foi de lá, que ele conversou, por telefone, com a FH, Veja os principais trechos da entrevista a seguir.
FH- Como a neurociência pode ajudar a medicina no futuro? O que há de novidades no horizonte e como o Brasil está inserido nesse contexto?
Sidarta Ribeiro:
A neurociência é uma das áreas de maior expansão na biologia. Ela tem interface com outras áreas do saber onde há muita coisa para contribuir com a medicina do futuro. Mas primeiro é preciso entender como o cérebro funciona e, ainda, sabemos pouco sobre ele, mas estamos em uma fase de, rapidamente, adquirir conhecimento. Em particular, o que acho muito importante e isso não é específico do campo da neurociência, mas se aplica ao cérebro, é o uso de células-tronco para recuperar função. Isto ainda está em desenvolvimento e, no Brasil, tem pessoas importantes fazendo coisas assim. Um exemplo é o (pesquisador) Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que faz neurociência e trabalha com células- tronco. Entendo também, que a descoberta, por exemplo, de que o Mal de Alzheimer é uma doença que se propaga por contato entre as células no cérebro é um aspecto que pode abrir o caminho para uma cura ou para a interrupção do desenvolvimento da doença. Esses são exemplos importantes para todas as pessoas, pois quem viver o suficiente correrá o risco de desenvolver o Alzheimer.
FH: O que já está sendo pesquisado na área de neurociência que pode ajudar a descobrir tratamentos e curas para as doenças degenerativas?
Ribeiro:
Citei o trabalho do professor Rehen, no Rio de Janeiro, onde eles estão trabalhando com células que podem ser programadas para desenvolver determinada característica morfológica, funcional. Isso permite pensar em substituir as células defeituosas no cérebro. Não estou dizendo que ele faça isso agora ou que eles tenham a cura e, sim, que eles estão pesquisando. Quando se tem, por exemplo, uma degeneração de células da família chamada de substância negra, que leva ao Mal de Parkinson, talvez, isso possa ser atenuado com a substituição de células. O Alzheimer, como se sabe, é uma doença que se espalha por contato de neurônios, então é uma possibilidade de atuar e interromper o desenvolvimento dela no cérebro.
FH- Desfrutando do bônus demográfico, o Brasil viverá em algumas décadas o ?peso? do envelhecimento populacional. Analisando a expectativa de vida de maneira geral, as pessoas estão vivendo mais e a tecnologia e os avanços da medicina fazem parte dessa conquista. Como a neurociência se insere no contexto de tratamentos e tecnologias para a população idosa? Caminhamos, de alguma forma, para um homem biônico?
Ribeiro:
Existem dois caminhos: o da engenharia e o da biologia. O da engenharia é o das pessoas incorporarem peças, circuitos ao seu próprio corpo, isso está acontecendo e tende a crescer. Mas o que também está acontecendo são as células – tronco e células programáveis. É a incorporação de mais células, ou de células e tecidos diferentes, que é biológico. Digamos que é um híbrido não com máquinas, mas com outros tipos de células, que possam ser transformadas para os pacientes. Esta medicina vai crescer muito mais do que a medicina ligada só a engenharia. Se as pessoas tiverem a opção de regenerar seu próprio corpo com células, e readquirir uma função, provavelmente, vão preferir isso a incorporar máquinas.
FH: O que é uma célula reprogramável?
Ribeiro:
Na verdade, há uma complexidade de terminologia associada a esse ramo do saber. Uma coisa é a célula- tronco, que se tem no corpo e que pode dar origem a outros tipos de célula. Outra coisa é, em laboratório, pegar uma determinada célula do corpo e aplicar uma série de fatores e fazê-la virar outra coisa, ou seja, reprogramá-la. Essa tecnologia está sendo desenvolvida em países do mundo inteiro e no Brasil também. Há muita gente querendo aplicar isso à medicina, ainda que de maneira incipiente, porque não sabemos direito se as células se integram e que função elas vão desempenhar. Mas é óbvio que esse é um caminho e, se a tecnologia dominar isso, será muito importante para a medicina. Vai abrir caminho para as pessoas fazerem uma reposição de certas partes do corpo, sem usar uma prótese mecânica ou eletro-eletrônica. Acredito que as duas coisas caminham em paralelo. Eu gostaria que, no longo prazo, o caminho biológico ganhasse, pois é preferível regenerar o próprio corpo a usar próteses mecânicas.
FH- Considerando o contexto mundial e os avanços da tecnologia na área de próteses robóticas, essa tecnologia não tende a ficar apenas nas mãos de quem tem mais recurso? Aqueles doentes que não dispõem de recursos financeiros terão dificuldades de acessar o que existe de mais inovador, uma vez que atualmente os mais pobres já têm essa dificuldade na questão dos medicamentos e tratamentos?
Ribeiro:
Eu acho complemente verdade e, infelizmente, a medicina faz parte de um grande negócio. Ela está no cerne do sistema capitalista no mundo ocidental, e isso é muito ruim para as pessoas. Nesse sentido, os tratamentos mais biológicos e menos de engenharia podem ter o potencial de ser mais barato também.

FH-Por que ele é mais barato?
Ribeiro:
Depende um pouco do que será feito. Hipoteticamente, falando de ficção cientifica, podemos imaginar que no futuro uma pomada ou injeção faça regenerar partes do corpo, coisas que estão sendo estudadas experimentalmente agora. Se isso depender de fazer uma célula crescer, por exemplo, fazer meio de cultura para elas, – não é muito caro. Elas crescem, se você coloca ?comida? (risos) e viram o que quiser. Agora, inserir computadores dentro das pessoas, claro, é uma tecnologia mais cara. Mas isso é atualmente, pode ser que um dia barateie. Mas acredito que no sistema capitalista, os ricos sempre acessam primeiro as tecnologias mais recentes e, especialmente, as mais caras. Acho que temos de separar aquilo do mundo científico daquilo que é questão política e de como a sociedade lida com esse comércio científico. Seria muito bom se a sociedade, de fato, priorizasse a saúde coletiva e investisse mais para que a saúde fosse boa para todos. Nós estamos nesse caminho, bem ´devagarzinho´, mas estamos indo.

FH- No atual cenário econômico mundial, com crise nos países desenvolvidos e a ascensão das economias emergentes, o crescimento econômico desses novos mercados poderá catalisar investimentos e reverter a condição na produção e acesso às tecnologias médicas?
Ribeiro:
Estamos vivendo um momento muito particular da história em que ocorre uma grande reconfiguração, sobretudo, da economia. A grande configuração que estamos assistindo é o crescimento dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, na sigla em inglês) e isso tem relação com o modo de alimentar uma economia interna pujante e de exportar, isso é uma coisa na qual o Brasil se encaixou muito bem. Acho que esse é o momento, o governo brasileiro tem mostrado clareza de que é um momento de dar um salto de qualidade tanto tecnológico quanto científico. Nesse momento, acho que o governo faz um grande esforço nesse sentido, inclusive com a clareza de que se nós somos menos desenvolvidos do que países da Europa e os Estados Unidos, então precisamos incrementar nosso intercâmbio com eles. Acho que isso tende a baratear a tecnologia em longo prazo.
FH: Mas você acredita que por conta da crise lá fora, o Brasil e economias emergentes conseguiriam atrair investimentos de fora do país para dentro de suas economias e com esses investimentos dar uma virada no sentido de conhecimento tecnológico na área médica e de neurociência?
Ribeiro:
Eu não sei se são os investimentos estrangeiros que vão fazer com que o País dê esse salto, e não tendo a acreditar nisso. Acredito que são os investimentos nacionais. Os investidores estrangeiros querem aplicar recursos em commodities e comprar soja e, não acho que eles queiram investir na nossa ciência. As pessoas têm de investir mais na nossa ciência e aumentar a qualidade da ciência feita no Brasil e não a quantidade. O governo tem feito um excelente papel e tem de continuar, mesmo nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte da ciência é financiada pelo governo. Acho ótimo se houver investimento estrangeiro para fazer ciência aqui, mas acredito que não é o que deve ocorrer.
FH: O barateamento do genoma no futuro poderá contribuir com a medicina personalizada? A população tendo mais conhecimento sobre suas prováveis doenças não poderá gerar um efeito contrário, ao invés delas procurarem se tratar, elas vão começar a se automedicar e fazer exames desnecessários? Não pode se tornar algo excessivo com a possibilidade do tratamento.
Ribeiro:
Isso tem acontecido, uma medicina com mais tecnologia como nos Estados Unidos, é uma medicina muito cara, porque se o médico tem uma série de exames para fazer e se algo dá errado, eles repetem todos os exames. Assim, eles têm um sistema de saúde caríssimo, capaz de fazer coisas muito sofisticadas, mas que não atende a maior parte das pessoas, e isto é uma questão central. Conhecimento para medicina deveria ser sempre bom e o que se faz com esse conhecimento é outra questão. Será que é preciso pedir o exame mais caro para todas as pessoas que passam na porta? O médico deveria se perguntar. Mas não vivemos essa realidade no Brasil. Na verdade, aqui, quem tem acesso só à saúde pública até conseguem fazer exames complexos, mas espera muito por isso. Suas perguntas são todas com cunho científico e político e de fato elas estão imbricadas. Mas eu não vejo que a gente tem de ter medo de conhecer mais o cérebro e saber desenvolver novas maneiras de pesquisar novas doenças só porque não vamos ter dinheiro para implantar isso, acho que são coisas separadas. O conhecimento pode ir avançando e nós podemos implementar aquilo, na medida do possível, para cada vez mais pessoas.
FH: Os pesquisadores apontam a burocracia como um grande obstáculo para a pesquisa no Brasil. Sabemos que muitos cientistas não conseguem ou demoram a obter material para pesquisas isso faz com que eles mudem até o foco inicial do estudo. Como você analisa o impacto da burocracia na área da neurociência voltada à medicina?
Ribeiro:
No que diz respeito às instituições, a burocracia existe no Brasil, nos Estados Unidos, França, Alemanha. Havia muita dificuldade de importação de equipamentos até o início do governo Lula, que fez uma série de melhorias. Porém, alguns pontos importantes não podem ser realizados pelo governo e isso está relacionado à maneira das empresas de material científico trabalharem. A maior parte dessas companhias praticam preços duas ou três vezes maior do que nos Estados Unidos ou na Europa, e fazem entregas com 30 ou 60 dias, sendo que lá fora se recebe em 24 horas.
Isso não é culpa do governo e sim das empresas. Elas tratam mal o consumidor de ciência brasileira. Não estou generalizando, porque existem empresas que estão se aprimorando e aprendendo fazer melhor. Mas há um problema, como o cientista brasileiro só recentemente passou a ter dinheiro para fazer pesquisa, eles só começaram a entender agora e nem sei se entenderam, que esse é um mercado que deve ser tratado com muito respeito e que vai crescer. O governo fez muito para melhorar, mas ele só poderia fazer uma parte.
Você pode dar um exemplo?
Ribeiro:
Por exemplo, se a empresa tem escritório no Brasil e um estoque, ela pode entregar rápido. Mas se está só nos Estados Unidos, por exemplo, é preciso pagar duas ou três vezes a mais para ter um reagente, produto ou equipamento, e esperar muito mais, um ou dois meses para receber, às vezes, os produtos chegam com o prazo de validade vencido. O governo tem atuado para facilitar o processo e uma parte desses problemas era a tramitação aduaneira onde, agora, a ciência tem tido um tratamento mais expedito. Mas o governo não pode resolver os problemas da morosidade das empresas. As empresas fazem isso porque o cientista brasileiro precisa comprar o produto e, muitas vezes, não têm no Brasil. O cientista faz o que for necessário: esperar, pagar mais caro. No fundo, tem a ver com o quanto respeito essas empresas tem pelo mercado científico brasileiro.
FH: Ainda sobre as pesquisas clínicas, o investimento também é apontado como um dos entraves. Isso melhorou com o crescimento da economia brasileira ou ainda tem sido um dos fatores de exportação dos nossos cientistas para trabalhos no exterior?
Ribeiro:
O investimento em ciência no Brasil nunca foi tão alto, apesar de que no início do governo houve certo contingenciamento, mas se olhar a macrofigura nos últimos nove anos, vivemos uma transformação radical de como o País trata ciência. Temos de ter clareza de que estamos muito aquém do nosso potencial e aquém em termos da qualidade da ciência feita aqui. Publicamos muitos artigos por ano, mas eles têm, em média, baixo impacto aqui. Isso tem de mudar. A ciência brasileira precisa se oxigenar pelo contato com ciências mais fortes no mundo e, nesse sentido, o governo tem muita clareza em orientar os esforços no intercâmbio, seja na graduação, mestrado e doutorado, e vamos colher os frutos disso nos próximos anos.