O paciente já está anestesiado e pronto para ser operado. Ao seu lado, o cirurgião se prepara para dar início ao procedimento: senta-se em frente a uma espécie de monitor, encaixa as mãos em uma série de controles e começa a pilotar um conjunto de braços robóticos. Cada movimento seu é replicado pela máquina e, enquanto o robô faz delicadas incisões e suturas, o médico enxerga, de maneira ampliada, tudo o que acontece dentro do paciente, em alta definição e em 3D.
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Cirurgia robótica reduz riscos a paciente com câncer de próstata
A cena referida parece saída de um filme de ficção, mas já é realidade em um número cada vez maior de centros equipados para realizar as chamadas cirurgias robóticas, procedimento minimamente invasivo que permite ao cirurgião manipular um paciente por meio de braços mecânicos. Desde o ano 2000, o número de cirurgias desse tipo no mundo saltou de apenas mil para quase meio milhão ao ano. Os dados são da empresa americana Intuitive Surgical, única a comercializar em larga escala uma máquina para esse tipo de cirurgia, um robô batizado de Da Vinci.
Vendido por no mínimo 1,5 milhão de dólares, a tecnologia está longe de ser considerada acessível. Ainda assim, os benefícios que promete a médicos e pacientes parecem justificar o alto investimento. Em meio a debates sobre custos, segurança e eficácia, a Saúde Business procurou dois especialistas para falar sobre suas experiências com a cirurgia robótica, uma das tecnologias mais promissoras, e polêmicas, dos últimos tempos.
CARLOS PASSEROTTI – Coordenador de cirurgia robótica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
O iPod é um dos instrumentos essenciais nas cirurgias realizadas pelo urologista Carlo Passerotti. Durante todos os seus procedimentos ecoam na sala as seleções de uma das três playlists de estilos variados preparadas conforme o humor do dia. Foi assim, ao som de samba, música clássica e rock, que Passerotti atingiu uma marca impressionante: se tornou o médico brasileiro com maior número de cirurgias robóticas realizadas, um total de mais de 600 procedimentos.
“Sempre fui fascinado por tecnologia. Desde criança adorava videogame, computador”, diz. Hoje, aos 40 anos, Passerotti é professor livre-docente da Universidade de São Paulo e coordenador de cirurgia robótica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista. “A primeira vez que ouvi falar em robôs sendo utilizado no centro cirúrgico foi durante a residência na Universidade Federal Paulista (Unifesp)”, diz. Na época, a novidade era um braço mecânico para auxiliar durante laparoscopias, procedimentos minimamente invasivos no qual o médico realiza apenas pequenas incisões no paciente e opera com o auxílio de uma câmera. Foi somente durante o pós-doutorado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que ele teve contato com a atual tecnologia.“Assim como a maioria dos médicos que hoje trabalham com cirurgia robótica, uma das coisas que me atraiu foi a possibilidade de fazer algo novo no mercado e ganhar abertura com isso”, afirma. A escolha foi acertada. Dentre todas as especialidades médicas, a urologia foi a que mais rapidamente adotou o uso dos robôs. “Um em cada sete homens terá câncer de próstata. É uma cirurgia comum, mas muito difícil de fazer por laparoscopia por se tratar de uma cavidade extremamente pequena”, afirma Passerotti. Para se ter uma ideia, hoje, nos Estados Unidos, 85% das cirurgias de câncer de próstata são robóticas. No hospital Oswaldo Cruz, as estatísticas são as mesmas.
“Mais de 80% do tempo do nosso robô é utilizado para cirurgias de próstata, embora também sejam realizadas cirurgias bariátricas, ginecológicas, do palato (para cirurgia do sono) e até ortopédicas, para reconstrução de nervos”, diz Passerotti. Segundo ele, a chegada do robô ao hospital também atraiu mais pacientes. Antes, o Oswaldo Cruz realizava 70 cirurgias de câncer de próstata ao ano. Hoje, são mais de 400.
O grande desafio em treinar mais médicos está na escassez de equipamentos no País. Hoje, há apenas 15 máquinas espalhadas por centros de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Barretos, no interior paulista. Para se ter uma ideia, os Estados Unidos possuem mais 2500 robôs. Outro desafio é a questão dos custos de cada procedimento, especialmente porque as pinças utilizadas são importadas ao custo de até cinco mil dólares cada. “Normalmente, os convênios cobrem a cirurgia como laparoscopia e o paciente paga a diferença das pinças e de outros extras, como o dos plásticos que revestem o robô”, conta. Em um procedimento de câncer de próstata, por exemplo, são usadas cinco pinças que podem ser reaproveitadas em 10 cirurgias. Na divisão, o custo para cada paciente fica em 2500 dólares.
Incluir esse procedimento no convênio, no entanto, é uma questão delicada. Ao aceitar pagar por algo ainda novo no País, os planos de saúde temem servir de plataforma de testes para médicos inexperientes. Isso resultaria em mais casos com complicações, com as quais o convênio teria que arcar. Uma solução poderia ser cobrir cirurgias feitas por médicos já credenciados. De qualquer forma, o centro desse debate parece ser justamente o principal ponto sobre os reais benefícios da cirurgia robótica. “Ela não é um procedimento perfeito e depende do cirurgião”, diz Passerotti. “A máquina não faz a cirurgia sozinha.” Pelo menos, não ainda.
HOMERO RIVAS – Professor assistente e cirurgião do Centro Médico da Universidade Stanford
Drones, impressão 3D, redes sociais, empreendedorismo, tecnologias vestíveis e robótica. Todas as tendências em alta no Vale do Silício parecem fazer parte da vida de Homero Rivas, professor assistente e cirurgião do Centro Médico da Universidade Stanford, na Califórnia. Nascido no México, Rivas se mudou para os Estados Unidos após a faculdade e se especializou em cirurgia gástrica minimamente invasiva. Hoje, aos 46 anos, divide seu tempo entre as aulas, o centro cirúrgico, o desenvolvimento de sua própria startup e pesquisas com novas tecnologias aplicadas à área de saúde.
“A medicina tem um modelo de negócios bastante antigo, não escalável”, diz Rivas. Escalabilidade é um termo usado no meio empreendedor para falar sobre o potencial de um negócio crescer e ganhar novos usuários com baixo investimento. No caso da medicina, ampliar o acesso aos serviços sem aumentar os custos é um grande desafio especialmente para um País como os Estados Unidos, onde os gastos nacionais com saúde este ano devem chegar a 3,2 trilhões de dólares. “Sempre me interessei por esse problema e acredito que há muitas formas de lidar com ele com a ajuda da tecnologia. É a chamada digital health, ou medicina 2.0”, diz Rivas.
Um de seus projetos, por exemplo, combina sensores e drones para entregar kits de emergência a domicílio. “Imagine um paciente cardíaco que usa uma pulseira com sensor. Ao perceber uma arritmia, como a de um infarto, o aparelho envia uma mensagem e dispara a entrega de um medicamento por drone”, afirma. A ideia é antecipar os cuidados enquanto a ambulância está a caminho, no trânsito.
Há 20 anos, esse interesse em inovação levou Rivas a se especializar em cirurgias minimamente invasivas e, mais tarde, em cirurgias robóticas. Hoje, diz ter perdido a conta das centenas” de procedimentos realizados com a tecnologia. “Fiquei fascinado porque a ideia inicial dessa cirurgia era permitir ao médico operar um paciente do outro lado do mundo”, afirma.
Embora hoje esse tipo de procedimento remoto ainda não seja autorizado pelo FDA (Food and Drug Administration, órgão regulador americano), Rivas é um grande defensor do método. “Ele oferece algumas vantagens claras. Enxergo mais detalhes com a imagem 3D, as costas não doem, pois opero sentado, e também corro menos riscos de contrair infecções do paciente”, afirma. Para o paciente, no entanto, Homero Rivas ressalta que o grande diferencial da cirurgia robótica se dá em comparação às chamadas cirurgias abertas. “Não existe melhor taxa de sobrevivência, ou cicatrização, se compararmos a cirurgia robótica à laparoscopia feita por médicos experientes”, afirma. “O problema é que, para determinadas especialidades, há poucos médicos treinados com laparoscopia. Nesses casos, o robô se popularizou mais rápido”.
Como em outros procedimentos, treinamento e familiarização com a tecnologia são essenciais para o sucesso da operação. “O problema é que é tão fácil aprender a manipular o Da Vinci que o médico inexperiente pode ter uma falsa sensação de segurança”, afirma Rivas. Outra questão é o alto preço. “Ainda temos muitos questionamentos relacionados a essa tecnologia, mas, no geral, acredito que o robô é uma plataforma formidável”, diz Rivas. “Muitos cirurgiões experientes não precisam dele, mas outros talvez gostem de aceitar novos desafios. A robótica é um deles e quem não se interessar por ela pode ficar para trás”.
*Esta reportagem está na edição de outubro-novembro-dezembro da revista Saúde Business