“Não somos as mesmas pessoas do ano passado, do dia anterior, nem mesmo aqueles que amamos são iguais. O extraordinário é que ao mudar, continuemos amando alguém que também mudou” (Somerset Maugham). Um de nossos mais ativos colaboradores vai desaparecer como instrumento de mediação entre o homem e a máquina: o teclado. Todas as principais plataformas de GenAI, ou qualquer outra modalidade de IA, estão lançando suas versões Multimodais, ou seja, versões em que a ‘fala humana’ (linguagem natural) é perfeitamente compreendida pela máquina, por seus algoritmos e por suas respectivas configurações neurais. E vice-versa: já entendemos com clareza, em qualquer idioma solicitado, o que essas IAs expressam. Estamos em um ponto nevrálgico na história da civilização humana: ao longo dos próximos anos o uso dos teclados ficará cada vez mais restrito aos admiradores, ou resistentes às mudanças, músicos, compositores, nostálgicos e, acima de tudo, deficientes auditivos ou com dificuldades de fala. O teclado, como engenho socioprodutivo e elemento de mediação sociocultural, está em declínio, quase morto. Levará algum tempo para ser enterrado, por óbvio, mas qualquer projeto futuro de comunicação entre homem e máquina seguirá cada vez menos a trajetória de seus dois séculos de convivência com os humanos. O teclado leva consigo, no mesmo féretro, o mouse.

(Um minuto de silêncio por duas das maiores e menos reconhecidas invenções humanas).

Recentemente ocorreu o lançamento do Copilot Voice (Microsoft), um agente que permite ao usuário conversar com seu computador naturalmente, quase como se estivesse dialogando com outra pessoa. Não se trata de uma simples melhoria nos comandos de voz (como os antigos “Oi, Siri” ou “Oi, Alexa”), mas uma interação muito mais profunda e intuitiva no reconhecimento de voz. O seu Copilot Vision vai mais longe: vê o que você está fazendo na tela e faz sugestões com base no conteúdo que está visualizando. Apple e Google já dominam essa ‘maquinaria’ com seus assistentes virtuais, embora estejam cada vez mais performáticos em seus novos lançamentos. A naturalidade da interação dos novos assistentes conversacionais é impressionante, ainda que o funcionamento real no cotidiano esteja aquém do que vem pela frente. O Projeto Astra, do Google, por exemplo, expande sobremaneira o contexto de ‘máquinas conversando com humanos de forma absolutamente natural’. O pobre teclado, afastado da conversa, fica por ali quieto, tímido, notando algo diferente entre humanos e eletrônicos… engole seco e sente que suas teclas trabalham menos…

Será difícil esquecer ou desprezar por completo esse fidalgo prosaico, o “teclado”. Seu nascimento se confunde com o homem por meio da música. Em 1361, o órgão da catedral em Halberstadt já tinha três teclados cromáticos e pedais, embora o tamanho moderno das teclas só fosse estabelecido no final do século XV. Sabe-se que os primeiros dispositivos de “teclagem” foram projetados na década de 1700 e os primeiros foram fabricados por volta de 1870. O teclado QWERTY sempre foi o layout mais comum para o alfabeto latino, usado até hoje em computadores e smartphones (o nome “QWERTY” vem da sequência das seis primeiras letras da primeira fileira do teclado). Foi inventado por Christopher Latham Sholes (1819-1890), o mesmo que desenvolveu a máquina de escrever. Em 1873, ele firmou uma parceria com a Remington & Sons (empresa de armamento e máquinas de costura) para a produção em massa de sua ‘caixa de letras’, denominação popular da época para a máquina de escrever. Modernamente, a teclagem (teclas correspondem a notas consecutivas na escala cromática) recebeu a pompa de ser chamada de “digitação”. Fica a indagação: enquanto o homem trabalha, o que farão nossos dedinhos pós-teclado?

Todo o século XX foi consumido pelos teclados. Um criança, mal assentasse o pé na adolescência já era empurrada pelos pais a apreender e conviver com as máquinas de escrever.  Mal sabíamos falar direito e já estávamos curvados sobre os teclados. No início dos anos 1990, os PDAs (Personal Digital Assistants) começaram a adicionar uma caneta (ponteira), mas a “tecnologia para reconhecimento da escrita à mão” não estava robusta o suficiente para competir com os vorazes teclados, que orgulhosos mudavam a ergonomia, mas não a prática. O dedo, por mais de um século, foi a extensão mais habilidosa e utilitária do corpo humano.

Quando grandes computadores e as máquinas pessoais proliferaram, surgiu ‘uma das maiores descobertas da história da escrituração humana’: o backspace. Não é uma tecla que valorizamos hoje, mas na maior parte do tempo ela não existiu nos teclados das máquinas de escrever. Você simplesmente não podia apagar algo que havia teclado no papel. “Não era assim que o mundo funcionava. Não era assim que os átomos funcionavam”. Havia vários tipos especiais de borrachas, versões de lápis com borracha, líquidos corretores, fitas, soluções químicas, havia, enfim, de tudo por um simples motivo: “errar era humano, mas imprimir errado era uma heresia!”. O que aconteceu foi que com o teclado dos computadores o usuário “ganhava” a mágica tecla do backspace, e sua vida mudou. Acredite, grande parte do sucesso dos PCs e dos desktops estava na disponibilização da tecla backspace. Sem falar nos ‘corretores automáticos de palavras’… A máquina deixou de ser burra, o maquinista deixou de ser grosso e o papel era arquivado como o santo-graal da eficiência humana. Exagero: no fundo, orgulhoso, o teclado sabia que sem ele nada disso seria possível.

Na sequência, apareceu outra invenção: o ‘teclado virtual’ (uma tela de exibição sensível ao toque). Embora o tamanho do dedo fosse diretamente proporcional à eficiência da tecnologia, esse conceito engoliu boa parte do mercado até os dias de hoje. Mas, apesar da impressionante variedade de recursos oferecidos até hoje, principalmente pelos smartphones (incluindo comandos de voz), a ‘grande maioria dos usuários ainda interage pressionando botões, cutucando telas ou deslizando o gordurento dedo por teclados virtuais ou físicos’. 

Não são poucos os que advogam que os teclados (e os elevadores) foram os criadores da burocracia. Antes das máquinas de escrever, escritórios funcionavam de forma caótica, com a escrita feita à mão em grandes livros com milhares de páginas. O mundo sem a máquina de escrever e o teclado era nonsense. Eles permitiram que a digitação tornasse a escrituração uma forma muito mais rápida e precisa da interface homem-máquina. Os teclados invadiram escolas, instalações do Estado, comércio e ciência, mudaram de cor, de formato, de idioma, cresceram e depois diminuíram de tamanho, e, aos poucos, estão desaparecendo…

Bilhões de pessoas de todos os perfis passam muitas horas ao dia em seu teclado. De manhã à noite. Seus dedos pressionam pequenos quadrados com letras numa ‘cadência rítmica imutável’. Os sons da digitação nos são familiares e reconfortantes, principalmente para aqueles que ‘usam seus dez dedos sem ter que olhar para eles’. O teclado foi o esperanto global nos dois últimos séculos.

O que você está lendo agora? Não importa, há 99% de chances de o texto ter passado por um teclado, aliás, por dúzias deles. Para degustar essa leitura, talvez você deva mais ao teclado do que aos seus autores. Pense assim: ‘de todos os artefatos e ferramentas que os humanos utilizam com as mãos, os teclados são de longe os mais amplamente usados ​​e influentes na civilização humana do último século’. Experimente a ideia de uma parada (por qualquer motivo) de todos os teclados por 24 horas (incluindo teclados dos celulares): a devastação em nossas vidas seria inimaginável. Mas, se você olhar nas “listas das maiores invenções humanas” provavelmente não encontrará mais do que uma linha enaltecendo o valoroso teclado

Há muitas explicações para nossa dependência dele. Uma delas é ergonômica: “humanos precisam sentir alguma conexão com as coisas que usam”. Nesse sentido, os teclados são para muitos um objeto de apego, um “cobertor de segurança”, um querido amigo, companheiro de jornada. Donald Winnicott (1896-1971), um dos mais importantes pediatras e psicanalistas do Século XX, defendeu o conceito de objetos transicionais e experiência transicional. Seriam as partes essenciais de todo o nosso desenvolvimento. A “transição” fala de um objeto ou experiência que ajuda a mudar nossos modelos mentais e, eventualmente, nos ajuda a superar a dependência incapacitante de nosso apego. Não é incomum que nos tornemos emocionais com objetos inanimados. Acredite, para a indústria de manufatura computacional, os teclados são objetos de apego. A maioria dos designers ou desenvolvedores de software, criam milhões de soluções tecnológicas inovadoras, mas se fecham diante da ideia de “perder seus preciosos teclados”. “Mudam tudo, mas não ousam reinventar o teclado”.

Como explica Rob Sloane, editor da revista “Medium” e autor do artigo “One Voice to Rule them All — is this the End of the Keyboard?”: “O teclado, uma invenção humilde, mas revolucionária, tem sido o herói anônimo da era digital desde sua estreia comercial no final do século XIX. Das teclas barulhentas das primeiras máquinas de escrever aos toques suaves e silenciosos dos laptops modernos, o teclado tem sido nosso um fiel companheiro em inúmeros empreendimentos humanos. Ele moldou a maneira como trabalhamos, nos comunicamos e criamos; tornou-se uma ferramenta indispensável em praticamente todos os aspectos de nossas vidas. Enquanto nos preparamos para nos despedir deste dispositivo icônico, é preciso celebrar seu passado histórico e o papel fundamental que ele desempenhou na tapeçaria do progresso humano”. A Dra. Emily Chen, proeminente pesquisadora de IA na Universidade da Califórnia (Berkeley), vai mais longe: “Estamos testemunhando uma mudança de paradigma em como humanos e máquinas se comunicam. A proliferação de sistemas de IA multimodais, capazes de entender e responder à linguagem natural, dicas visuais e até mesmo emoções, está tornando métodos de entrada tradicionais, como teclados, cada vez mais obsoletos”.

Essa realidade vai mudar o modo como nos comunicamos e interagimos com o mundo. “O ChatGPT-4, o Gemini, ou o Claude não são apenas modelos de linguagem; são portais para uma nova era de interação homem-máquina”, explica Chen. O declínio do teclado e a ascensão da interação multimodal podem fazer desaparecer o termo “digitar”, sendo substituído por formas mais naturais e intuitivas de mutualidade. Nesse sentido, o futuro será moldado pela conversação, não pela computação.  

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)